sábado, 5 de maio de 2018

Roma Antiga. A vida sexual. Géraldine Puccini-Delbey. «O casamento romano é ele próprio baseado na noção de societas, comunidade de património e de vida entre duas pessoas de sexo oposto»

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Um fundamento filosófico
«(…) Cícero, na sua obra filosófica Dos Deveres, concordando com os peripatéticos e com os estóicos, considera o casal como o grupo animal original do qual derivam todos os grupos maiores: a sociedade reside primeiro na união conjugal, e depois nas crianças. O casal e os seus filhos formam a unidade de base que serve para fazer nascer a cidade e o Estado. O casamento é, por assim dizer, o viveiro do Estado, e o seu objectivo é gerar crianças, liberorum creandorum causa, de acordo com a fórmula ritual. No princípio de De inuentione, Cicero, interrogando-se acerca da origem da eloquência, descreve o estado natural antes da civilização, quando os homens erravam ao acaso pelos campos à maneira dos animais e quando ninguém vira ainda casamentos legítimos: estes são um critério decisivo de civilização, e Cícero liga todo o desenvolvimento social à união dos dois sexos no seio da instituição do casamento.
Esse tema é igualmente tratado por Lucrécio num texto poético que mostra que o surgimento da civilização humana põe fim ao reino das pulsões sexuais cegas e incontroladas, canalizando-as pela instituição do casamento. Vénus juntava os corpos dos amantes nos bosques; com efeito, cada mulher cedia quer a um desejo recíproco, quer à força violenta do homem e à sua paixão imperiosa [...]. Antes da civilização, os seres humanos eram governados pelas suas pulsões (cupido et libido); conheciam apenas copulações fortuitas, à semelhança dos animais. A civilização traz consigo a vida em comum: a mulher, pelos laços do casamento, torna-se propriedade de um único esposo. Este fundamento filosófico do casamento é ridicularizado, com humor, mas também com uma certa provocação, pelo poeta elegíaco Ovídio, que apresenta, pelo contrário, o primeiro acto sexual como o meio de civilizar os homens primitivos selvagens e que insiste no prazer sentido pelos animais fêmeas ao copularem: no início havia uma massa confusa de coisas, sem qualquer ordem [...]. O género humano errava, solitário, pelos campos [...] e durante muito tempo os homens ignoravam-se uns aos outros. Diz-se que foi a voluptuosidade fagueira que lhes suavizou as almas bravias; um homem e uma mulher encontraram-se num mesmo lugar; o que ambos fizeram aprenderam por si mesmos, sem qualquer mestre; Vénus realizou o seu doce ofício sem qualquer manual.
Não é o casamento que traz a civilização aos olhos de Ovídio, mas sim a paixão sexual, o que Lucrécio, por seu turno, associa ao estado primitivo do homem selvagem. Esta passagem de Ovídio contém algumas evidentes reminiscências do poema de Lucrécio, mas sustentando deliberadamente o oposto da demonstração epicurista a propósito da natureza do amor. Lucrécio pinta a paixão sexual como uma força destrutiva que é preciso evitar a qualquer preço, porque impede o homem de atingir a ataraxia; ele aceita o acto sexual unicamente quando este é necessário para a reprodução. Virgílio, igualmente, mostra no conjunto da sua obra poética que o desejo sexual conduz a um comportamento irracional, violento, que leva à loucura furiosa (furor) e à raiva (rabies). A Vénus ovidiana, pelo contrário, tem o apanágio da doçura e constitui-se como o agente da concórdia entre os amantes. O acto sexual é o melhor meio de apaziguar uma amante ciumenta e irritada. Não são as palavras que podem dissipar uma querela de apaixonados, mas os prazeres de Vénus, gaudia Veneris. Ovídio parece apresentar aqui, de maneira séria, uma doutrina científica segundo a qual o acto sexual é eficaz para trazer a paz aos dois parceiros, mas, na realidade, o jogo intertextual com Lucrécio e Virgílio, que demonstram o contrário, ilustra o carácter incongruente e discrepante das suas afirmações, característica da sua escrita poética.
Apesar deste jogo poético subversivo, o casamento surge habitualmente como uma instituição fundamental sobre a qual assenta o equilíbrio da sociedade romana. O casamento romano é ele próprio baseado na noção de societas, comunidade de património e de vida entre duas pessoas de sexo oposto. Esta parceria entre o homem e a mulher exclui a poligamia, que parece recolher um julgamento negativo, ainda que raros sejam os autores que a ela façam alusão. A poligamia é uma instituição própria dos bárbaros. É Salústio quem exprime mais claramente o seu desprezo pelas sociedades poligâmicas dos númidas e dos mouros, nas quais nenhuma esposa ocupa a posição de parceira igual: [...] cada um, de acordo com os seus recursos, tem o maior número de esposas possível, uns dez, outros mais, e os reis mais ainda. Assim, o espírito é assediado pela quantidade; nenhuma obtém o estatuto de associada, todas são igualmente sem valor. Já Tácito faz o elogio dos casamentos dos germanos, porque estes últimos, quase únicos entre os bárbaros, se contentam em ter apenas uma esposa, com a excepção de alguns que, não por sensualidade (libido), mas devido à sua nobreza, são invadidos por numerosas propostas de casamento». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.

Cortesia de TGrafia/JDACT