terça-feira, 1 de maio de 2018

Moll Flanders. Daniel Defoe. «… e ele continuou a apertar-me com força e voltou a beijar-me até quase não poder respirar, então sentou-se e disse, querida Betty, estou apaixonado por si»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sucedeu um dia que, como costumava fazer, ele subiu correndo a escada, indo em direcção ao aposento que as suas irmãs usavam para trabalhar e, como pôs-se a chamá-las de longe, antes de entrar, também hábito seu, e eu estivesse sozinha, cheguei à porta e disse, senhor, as senhoras não estão aqui, desceram para o jardim, e enquanto eu caminhava para dizer isso, ele já chegava à porta e, tomando-me nos braços, como que por acaso, disse, ah, senhora Betty, está aqui?, melhor ainda, quero mesmo falar consigo, e não com elas, e sem me soltar beijou-me três ou quatro vezes. Esforcei-me por me libertar, ainda que sem excessivo empenho, e ele continuou a apertar-me com força e voltou a beijar-me até quase não poder respirar, então sentou-se e disse, querida Betty, estou apaixonado por si.
Devo confessar que suas palavras inflamaram-me o sangue, foi como se todos os meus sentimentos me invadissem o coração, deixando-me desnorteada, o que ele pôde ter visto facilmente no meu rosto; repetiu a seguir, várias vezes, que estava apaixonado por mim, e meu coração disse, com a clareza de uma voz, que era agradável ouvir aquilo, mais ainda, todas as vezes que ele dizia estou apaixonado por si, meus rubores claramente respondiam assim espero, senhor! Daquela vez nada mais aconteceu, fora apenas inesperado, e depois que ele se foi, logo me recuperei; ele teria ficado mais tempo comigo se não tivesse lhe ocorrido olhar pela janela e ver que as suas irmãs vinham pelo jardim, então despediu-se, beijou-me de novo, disse que falava com toda a seriedade e que voltaria a encontrar-me sem demora e saiu, deixando-me infinitamente feliz embora perplexa, e o meu sentimento não estaria errado, não fosse um triste detalhe, no qual consistia todo o equívoco: a senhora Betty estava apaixonada, o cavalheiro, não.
A partir daquele momento começaram a agitar-se ideias estranhas na minha cabeça, e posso dizer com toda a sinceridade que eu não era mais a mesma; o facto de um cavalheiro como aquele dizer que estava apaixonado por mim e que eu era uma criatura encantadora, como ele se expressara, era coisa com a qual eu não estava habituada, e a minha vaidade elevou-se aos píncaros; é verdade que eu tinha a cabeça cheia de orgulho, mas como nada sabia a respeito da maldade do mundo, esquecia todos os cuidados quanto a minha própria segurança ou a minha virtude, e se o meu jovem senhor houvesse desejado aproveitar-se de mim, poderia ter tomado comigo qualquer liberdade que lhe aprouvesse: não se dera conta da vantagem que tinha, o que foi a minha sorte naquele momento.
Depois desse avanço, não demorou muito até que surgisse outra oportunidade de ele novamente me surpreender, e quase em igual situação; na verdade, houve um tanto de cálculo da sua parte, embora não da minha; assim se passaram os factos: as moças tinham saído para fazer visitas com a mãe; o seu irmão viajara para fora da cidade; e, quanto ao pai, fazia uma semana que se encontrava em Londres, ele estivera vigiando-me com tanta atenção que sabia onde eu me encontrava, ao passo que eu não sabia sequer que ele estava em casa; ele subiu rapidamente a escada e, ao me ver trabalhando, entrou directamente no aposento e começou a fazer o mesmo da vez anterior, tomando-me nos seus braços e beijando-me durante pelo menos um quarto de hora sem parar.
Eu estava no quarto da sua irmã mais nova, e, como não havia ninguém na casa senão as criadas, atarefadas no andar de baixo, talvez ele se tenha portado com mais atrevimento: em suma, mostrou-se mais fogoso comigo; é possível que eu tenha sido um tanto fácil, pois Deus é testemunha de que não lhe opus resistência alguma enquanto ele se limitava a abraçar-me e a beijar-me; a verdade é que me sentia demasiado feliz para resistir muito». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT