segunda-feira, 16 de abril de 2018

Quatro Orações Camonianas. Aníbal Pinto Castro. «Nem me falta na vida honesto estudo, com longa experiência misturado, nem engenho, que aqui vereis presente…»

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Camões e a Língua Portuguesa
«(…) Não cabe neste momento a refutação da tese tão frágil quanto imaginosa, defendida por Hermano Saraiva que, arrastado por um falacioso gosto da novidade e servido por brilhantes qualidades de comunicação, não prestou a indispensável atenção à moderna metodologia seguida em estudos desta natureza, para extrapolar dos textos poéticos, camonianos e comprovadamente não camonianos, o que eles, em matéria de história e crítica literárias, não comportam. Notarei apenas que até o saber linguístico de Camões chega para a desmentir, porque se ajusta completa e perfeitamente ao retrato cultural que ele próprio, com traço exacto e orgulhosa convicção renascentista, de si esboçou, ao afirmar ao rei Sebastião, no fecho d’Os Lusíadas:

Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
cousas que juntas se acham raramente.

Desse honesto estudo, que lhe proporcionou um domínio indiscutido do latim, lhe vinha a consciência da filiação do português na fecunda matiz do lácio, sustentada, aliás, n’Os Lusíadas, pela boca de Vénus, quando afirma que a língua da gente lusitana, com pouca corrupção crê que é a latina. E convém não esquecer, a este propósito um passo da Sátira II, de André Falcão Resende, dedicada a Luís de Camões, onde segundo Teófilo Braga e mais recentemente, Costa Ramalho, a expressão bacharel latino se refere ao próprio destinatário da composição:

Logo algum vil esprito o nota e acusa:
Vedes o triste (diz aos do seu bando),
Que é bacharel latino, e nada presta
É poeta o coitado, é monstro nefando.

Bem dentro do pensamento cultural da sua época, o Poeta não estava alheio ao movimento de defesa e ilustração do vulgar nacional perante a supremacia do latim proclamada por alguns humanistas de mais estreito dogmatismo. Tal movimento, comum, embora com naturais oscilações cronológicas, a toda a Europa romântica, do De vulgari eloquentia, de Dante, à Arte de la lengua castellana, de Nebrija e à Defense et illustration de la langue française, de Du Bellay, manifestara-se entre nós com os primeiros gramáticos Fernão Oliveira e João Barros e inspirara a Ferreira o conhecido louvor da portuguesa língua que encerra a carta III do Livro I dos Poemas Lusitanos, endereçada a Pêro Andrade Caminha.
Da cultura clássica de Camões não há que duvidar. A cítica, de Faria Sousa a José Maria Rodrigues, Epifânio e tantos outros não tem cessado de acumular provas bem concludentes da sua extensão e profundidade. Se os meios escolares da sua aquisição não estão documentalmente determinados, os resultados sobram para convencer os mais cépticos». In Aníbal Pinto Castro, Camões e a Língua Portuguesa, Quatro Orações Camonianas, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1980.

Cortesia de APHistória/JDACT