quarta-feira, 11 de abril de 2018

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «No alto da torre do castelo de Coimbra, com a mão direita pousada numa ameia de granito, um menino de oito anos, vestido com uma bonita dalmática vermelha, observa o vasto horizonte»

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Coimbra, Julho de 1116
«(…) De súbito, no meio da azáfama geral, Taxfin e Abu Zhakaria chegaram junto dela. O governador de Córdova estava furioso e, por entre os impropérios ao califa, explicou que Zulmira, Fátima e Zaida iriam partir já, junto com as muitas mulheres que estavam no acampamento. Era o contrário do costume: a gaziva ia sempre atrás dos exércitos! O estúpido africano vai mandar o harém à frente!, declarou Taxfin. Avançaram umas centenas de metros por entre o pó e as tropas, até que chegaram perto de três carroças, onde já estavam algumas mulheres. Abu Zhakaria chamou os condutores e, antes de elas subirem, Taxfin beijou as meninas e abraçou Zulmira. Vemo-nos à noite, nós iremos a seguir, disse. Zulmira deu-lhe um beijo e sorriu-lhe. Não tenhais receio, tudo vai correr bem. Temos de saber esperar! Um dia, acabaremos com o berbere. A carroça começou a deslocar-se quando Fátima deu um grito: Abu, tem cuidado!
Zulmira sorriu, a filha adorava o cordovês bonito e bom guerreiro que andava sempre ao lado de Taxfin, e pelo embaraço visível na cara dele aquele forte sentimento era correspondido. Abraçou as filhas e as três sopraram beijos com as mãos aos dois homens. Depois, foram atravessando o acampamento a custo, até que os condutores descobriram finalmente uma estrada e avançaram por ela. Zulmira suspirou à medida que via o bulício ficar para trás. Encostou-se a uma saca e tentou sentar-se com conforto junto das meninas. Umas léguas depois, viu à beira do caminho uma mulher de negro, com um capuz a tapar-lhe o rosto, e teve um mau pressentimento. Quando a carroça passou perto da desconhecida, ouviu-a gritar: voltem para trás! Os ineptos condutores riram-se, mas Zulmira franziu a testa, e ainda estava com a mesma expressão de preocupação quando, depois de uma curva na estrada, deram de caras com um grupo de trinta cavaleiros cristãos, que cercaram as carroças e as obrigaram a parar. O seu comandante era um jovem bem-parecido, um nobre galego que nessa tarde Zulmira veio a saber chamar-se Fernão Peres Trava.
As três carroças, em vez de rumarem para leste, tinham-se desviado para norte e foram apanhadas pelas tropas portucalenses de dona Teresa, que as levaram para Coimbra. Só no final do dia, já longe dali, Taxfin se deu conta dessa desgraça. Perdera Zulmira, Fátima e Zaida. Foi assim, contou-me Zaida, que elas ficaram prisioneiras em Coimbra, onde as viríamos a conhecer. Porém, durante muitos anos nenhum de nós soube das secretas quimeras de Zulmira e de seu marido Taxfin, que eram do tamanho do céu estrelado que à noite cobria a sua muito amada Córdova. Eu e o meu melhor amigo, Afonso Henriques, que convivemos com as três mouras, só demos conta das tremendas ambições de Zulmira quando já era tarde de mais para ela. Certas mulheres, apesar de ambiciosas, preferem ser prudentes e o seu coração é um poço profundo, onde se escondem tanto os sinais do passado como os desejos do futuro.

Coimbra, Julho de 1117
No alto da torre do castelo de Coimbra, com a mão direita pousada numa ameia de granito, um menino de oito anos, vestido com uma bonita dalmática vermelha, observa o vasto horizonte, repleto de exércitos muçulmanos, e tem pena de não ter conhecido bem o seu pai. O dia nasceu há pouco, uma neblina espessa cobre ainda os campos e o menino examina, com atenção, a linha de inimigos que rodeia, lá em baixo, as muralhas da cidade. Vê estandartes de múltiplas cores, centenas de cavalos fechados entre cercas, cavaleiros já equipados e em formatura, envoltos nos seus mantos azul-escuros, e uma grande e majestosa tenda colocada no centro do acampamento, e onde provavelmente se encontre o califa almorávida, Ali Yusuf.
O menino pensa no seu pai. Tem a certeza de que ele venceria qualquer batalha, mas não se lembra bem dele. Aquilo de que se recorda é tão vago que não sabe se tudo não passou de um sonho fantástico, construído a partir das mil histórias que escutou». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT