domingo, 18 de março de 2018

O Segredo de Sophia. Susanna Kearsley. «… e uma barba escura, bem aparada, que o fazia parecer-se ligeiramente com um pirata. O seu jeito de caminhar também demonstrava um certo ar de superioridade, de confiança. Perguntou-me: posso ajudá-la?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não foi por acaso. Não houve nenhuma parte que tivesse acontecido apenas por acaso. Apercebi-me disso mais tarde, ainda que essa ideia, no momento em que surgiu, tenha sido difícil de aceitar, porque eu sempre acreditara firmemente no livre-arbítrio. A minha vida até então parecera comprovar isso mesmo, tinha escolhido certos caminhos e eles tinham conduzido a certos fins, todos eles bons, e conseguia olhar para todos os contratempos menores que enfrentara ao longo do percurso não como má sorte, mas simplesmente como produtos das minhas decisões imperfeitas. Se tivesse tido de escolher um credo, teriam sido os versos corajosos e vibrantes do poeta William Henley: sou o senhor do meu destino; sou o capitão da minha alma. Por isso, naquela manhã de Inverno, quando tudo começou, quando entrei pela primeira vez no carro alugado e segui para norte de Aberdeen, não pensei, nem por uma vez, que pudesse haver a mão de outra pessoa ao leme. Acreditei sinceramente que a decisão era minha quando me desviei da estrada principal para a estrada mais pequena, que seguia ao longo da linha costeira. Talvez não tenha sido uma decisão muito sensata, tendo em conta que as estradas estavam cobertas pelo que me tinham assegurado ser a neve mais alta que caíra sobre a Escócia em quarenta anos, e tinham-me advertido de que poderia correr o risco de encontrar neve acumulada na estrada e sofrer alguns atrasos. Se tivesse tido mais cuidado e, sobretudo, sabendo que tinha um prazo a cumprir, deveria ter seguido pela autoestrada mais movimentada, mas o pequeno letreiro que dizia Estrada Costeira levou-me a mudar de direcção.
O meu pai sempre disse que eu tinha o mar no sangue. Tinha nascido e sido criada ao lado do mar, nas costas da Nova Escócia, e nunca consegui resistir ao seu apelo de sereia. Por isso, no local onde a estrada principal, à saída de Aberdeen, curvava em direcção ao interior decidi virar antes para a direita, e segui o percurso ao longo da costa. Não sei que distância tinha percorrido quando avistei pela primeira vez o castelo arruinado sobre o penhasco, uma linha muralhada de escuridão que tinha como pano de fundo um céu repleto de nuvens, mas mal o vi fiquei cativada, conduzindo um pouco mais rápido na esperança de poder alcançá-lo mais cedo, deixando de prestar qualquer atenção às casas aglomeradas por que passava, e sentindo alguma desilusão quando a estrada fez uma nova curva fechada, afastando-se do castelo. Mas então, depois do emaranhado de um bosque, a estrada fez uma nova curva em sentido contrário, e ele surgiu de repente: umas ruínas longas e obscuras, de contornos bem delineados sobre os campos cobertos de neve que se estendiam proibitivamente entre a margem do penhasco e a estrada.
Avistei mais à frente um parque de estacionamento, um pequeno terreno plano, com troncos que demarcavam os espaços para os automóveis e, seguindo um impulso, entrei e parei. Estava vazio. Não era surpreendente, uma vez que ainda não era sequer meio-dia, o dia estava frio e ventoso, e não havia motivos para que alguém parasse ali, a não ser que pretendesse ir ver as ruínas. E só de olhar para o único caminho que parecia levar ao castelo, um caminho em terra, gelado e profundamente mergulhado na neve, que me chegaria aos joelhos, pensei que não deveria haver muitas pessoas que parassem ali naquele dia. Sabia que também eu não deveria parar. Não tinha tempo. Tinha de estar em Peterhead à uma da tarde. Mas de súbito alguma coisa dentro de mim sentiu a necessidade de saber exactamente onde estava e, portanto, procurei a localização no mapa.
Passara os cinco meses anteriores em França, onde tinha comprado o mapa, e este tinha algumas limitações, revelando mais preocupação com as estradas e autoestradas do que com as localidades e ruínas. Estava tão concentrada a olhar para a garatuja da linha costeira e a tentar descortinar os nomes impressos em letras miúdas que não reparei no homem até ele passar por mim, caminhando lentamente, de mãos nos bolsos, com um spaniel de patas enlameadas imediatamente atrás de si. Parecia um lugar estranho para alguém andar a passear, ali no meio de nada. A estrada era movimentada e a neve ao longo das bermas não deixava grande espaço livre para caminhar, mas não questionei o seu aparecimento. Sempre que podia escolher entre uma pessoa viva e um mapa, escolhia a pessoa. Portanto, mexi-me rapidamente, de mapa na mão, e abri a porta do carro, mas o vento salgado que soprava do mar e atravessava os campos era mais forte do que eu pensava. Roubou-me a voz. Tinha de tentar novamente. Desculpe… Creio que o spaniel me ouviu primeiro. Virou-se para mim e depois o homem também se virou e, ao ver-me, voltou para trás. Era mais jovem do que eu esperava, não muito mais velho do que eu, talvez tivesse trinta e poucos anos, tinha cabelos escuros, asperamente chicoteados pelo vento, e uma barba escura, bem aparada, que o fazia parecer-se ligeiramente com um pirata. O seu jeito de caminhar também demonstrava um certo ar de superioridade, de confiança. Perguntou-me: posso ajudá-la?» In Susanna Kearsley, O Segredo de Sophia, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-944-5.

Cortesia de ASA/JDACT