sábado, 10 de março de 2018

Idade Média. Umberto Eco. «Para começar, temos os troubadours provençais e os minnesänger alemães, inventores do amor cortês como paixão casta, mas obsessiva, por uma mulher inacessível…»


Cortesia de wikipedia

A Idade Média não repudiou a ciência da Antiguidade
«(…) Os romanos ergueram uma rede de estradas que ligavam todas as cidades do mundo conhecido, mas vejamos como essas estradas estavam representadas num mapa romano que, recebendo o nome daquele que no século XV descobriu uma versão medieval, ficou conhecido por Tabula Peutingeriana. Este mapa é muito complicado; a parte superior representa a Europa, e a inferior a África, mas estamos exactamente na situação do mapa ferroviário: aquela espécie de riacho que separa as duas margens seria o Mediterrâneo. Ninguém pode imaginar que os romanos, que continuamente atravessavam o mare Nostrum, ou os navegantes medievais das repúblicas marítimas, pensavam que o Mediterrâneo fosse estreito como um rio. O problema é que não lhes interessava a forma dos continentes, mas apenas a informação de haver uma via marítima para ir de Marselha a Génova.
Vejamos agora Cristo Giudice tra Gli Apostoli, de fra Angelico, na catedral de Orvieto. O globo (símbolo habitual do poder soberano) que Jesus tem na mão representa um mapa em T invertido. Seguindo o olhar de Jesus, percebemos que olha para o mundo e o mundo está, portanto, representado como quem o vê de cima e não como o vemos, e por isso está invertido. Se um mapa em T nos aparece na superfície de um globo, isso significa que esse mapa era entendido como representação bidimensional de uma esfera. A prova pode ser julgada insuficiente, porque este fresco é de 1447 e, portanto, de uma Idade Média muito avançada. Mas no Liber Floridus vê-se um globo imperial que tem na face visível um mapa do mesmo género e estamos no século XII.

A Idade Média não foi uma época em que ninguém se atrevia a ir além dos limites da sua aldeia
É bem sabido que a Idade Média foi uma época de grandes viagens: basta pensar em Marco Polo. A literatura medieval está repleta de relatos de viagens fascinantes, ainda que com uma abundância de elementos lendários, e os vikings e os monges irlandeses foram grandes navegadores, para não falar das repúblicas marítimas italianas. Mas, acima de tudo, a Idade Média foi uma época de peregrinações, em que até os mais humildes se metiam ao caminho em viagens penitenciais a Jerusalém, a Santiago de Compostela ou a qualquer outro famoso santuário onde estivessem conservadas as milagrosas relíquias de algum santo. A tal ponto que, em torno desta actividade dos peregrinos, surgem estradas e abadias (que funcionavam também como albergues) e são escritos guias muito minuciosos que indicam os locais dignos de visita ao longo do percurso. A luta entre os grandes centros religiosos para obter relíquias dignas de visita faz da peregrinação uma verdadeira indústria que envolvia as comunidades religiosas e os centros habitados, e Reinaldo de Dassel, chanceler de Frederico, Barba Roxa, tudo fez para subtrair a Milão e levar para Colónia os restos dos três reis magos. Tem sido observado que o homem medieval tinha poucas oportunidades para se deslocar a centros próximos, mas muitas para se aventurar a destinos remotos.

A Idade Média não foi apenas uma época de místicos e rigoristas
A Idade Média, época de grandes santos e de um poder incontestado da Igreja, de influência das abadias, dos grandes mosteiros e dos bispos das cidades, não foi, porém, apenas uma época de costumes severos, insensível aos atractivos da carne e dos prazeres dos sentidos em geral. Para começar, temos os troubadours provençais e os minnesänger alemães, inventores do amor cortês como paixão casta, mas obsessiva, por uma mulher inacessível e, portanto, como muitos dizem, do amor romântico no sentido moderno do termo, como desejo insatisfeito e sublimado. Mas neste mesmo período florescem histórias como a de Tristão e Isolda, de Lancelote e Guinevere, de Paolo e Francesca, em que o amor não é apenas espiritual, mas arrebatamento dos sentidos e contacto físico; e também as celebrações da sensualidade pelos poetas goliardos não se mostram pudicas. Não são moderadas nem pudicas as manifestações carnavalescas em que, embora só uma vez por ano, é permitido ao povo miúdo comportar-se à margem de todas as regras; as sátiras para divertimento dos camponeses não poupam palavras obscenas nem descrições das várias vergonhas corporais. A Idade Média vive uma contínua contradição entre o que é afirmado, pregado e exigido como comportamento virtuoso, e os comportamentos reais, frequentemente não ocultados sequer por um véu de hipocrisia». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.

Cortesia PdQuixote/JDACT