sábado, 31 de março de 2018

A Dor no 31. A Mulher do Vaso de Alabastro. Margaret Starbird. «Ele aproximou-se com Yoshua e disse-lhe o nome da irmã. Mas não foi preciso apresentá-los: quando se olharam pela primeira vez, ela percebeu que ele já a conhecia»

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«(…) Sem dizer mais nenhuma palavra, ela olhou fixamente para o jardim, sentindo um perfume de visco e lírios, a poeira no ar. Estou deixando a minha casa, pensou. Talvez para sempre. Meu irmão e minha irmã, a casa onde cresci, o jardim onde brincávamos. O jardim onde, pela primeira vez, encontrei o meu Senhor. Nosso jardim reservado. Ela fez uma pausa, perdida nas lembranças. Levando Miriam pela mão, Yosef caminhou lentamente até ao portão da casa. A areia fria da pequena passagem pressionava os pés, pois as sandálias abertas não eram capazes de protegê-las. Ele ajudou a viúva do amigo a montar no jumento e desamarrou-o. Andando devagar, o cajado na mão, ele conduziu o animal, levando-o para longe da vila. De vez em quando, olhava para Miriam. Ela parecia mergulhada no seu mundo interior e não percebia mais a presença do homem que a acompanhava. Ele seguia ao lado dela em silenciosa comunhão, conduzindo-a pela estrada sinuosa distante da casa onde ela vivera a infância, afastando-se de Betânia e do Monte das Oliveiras, mergulhando no deserto, no caminho iluminado pela luz da lua. Ela podia sentir o cheiro e o gosto da areia que, transportada pelo vento do deserto, se lançava contra o seu corpo. Os lábios entreabertos, os olhos queimando. Miriam mantinha-os quase fechados para protegê-los do sol ardente e da areia que esfolava. Enrolou-se mais no manto, formando um casulo de lã branca que a protegia da hostilidade da natureza. Yosef caminhava ao seu lado em silêncio, perdido nos seus próprios pensamentos. De vez em quando, ele procurava saber se ela estava muito cansada, incomodada com a aridez que os envolvia, zelava pelo seu conforto, embora ciente de que precisavam seguir em frente e sem demora.
Sentada no jumento, Miriam balançava suavemente de um lado para o outro, e os pensamentos tornavam-se difusos, como acontecera tantas vezes nos últimos dias. Os devaneios não se deixavam perturbar por distracções exteriores, uma vez que a paisagem era sempre igual. Lembrou-se de quando conheceu Yoshua. Ela estava sozinha no banco do jardim da sua casa, em Betânia. O seu irmão Lázaro levou Yoshua até ao jardim, e os dois caminharam um pouco na sombra fria, falando em voz baixa, sem perceberem a presença dela. Miriam já ouvira falar daquele homem, quem não ouvira? Ele era aclamado por toda a Judeia. Ela sabia o quanto seu irmão o admirava. Agora, vendo-o de perto, também se sentiu atraída. Era um homem mais alto do que a média, de feições magras e alongadas e lindas mãos. O cabelo e a barba estavam cuidadosamente aparados, os olhos eram escuros e intensos. Mas a característica que mais a impressionava era a segurança tranquila, um ar de autoridade e integridade que lhe realçava a estatura.
Então, Lázaro descobriu-a, silenciosa, sob a amendoeira. Ele aproximou-se com Yoshua e disse-lhe o nome da irmã. Mas não foi preciso apresentá-los: quando se olharam pela primeira vez, ela percebeu que ele já a conhecia. Ele sorriu: Shalom. A paz esteja convosco, ela respondeu àquele cumprimento ancestral. O olhar que ele lhe lançou fez sentir-se linda. Podia perceber isso nos olhos dele. E, naquele instante, Miriam soube que amaria para sempre Yoshua, o amigo de seu irmão. Confusa, ela desviou o olhar para o chão e corou, deixando as longas tranças negras cobrirem o seu rosto. Vou pedir à Marta que prepare uma bebida para refrescá-los, murmurou ela. E saiu correndo do jardim, quase tropeçando de tanta pressa. Vários meses depois, eles se casaram. Um sorriso veio aos seus lábios quando se lembrou de como ficara surpresa ao ouvir de Lázaro que ele havia aceitado o forasteiro da Galileia como cunhado. Herdeira das terras que faziam fronteira com Jerusalém, ela seria a mulher de Yoshua de Nazaré, descendente do rei David.
O casamento teve importância dinástica, unindo as famílias de dois grandes amigos: David, filho de Jessé, e Jónatas, filho de Saul. A história da amizade entre os dois era contada havia vários séculos nas casas dos judeus. Como Lázaro explicara à irmã, o casamento dela com Yoshua também envolvia questões políticas. Mas era, acima de tudo, a realização de uma profecia. Lázaro e seus amigos zelotes membros da seita e do partido político judaico Zelote, uma facção fundamentalista, estavam convictos de que os tetrarcas herodianos que colaboraram com os romanos haviam usurpado o trono de David. Estavam convencidos, ainda, de que Deus enviaria um Messias davídico que libertaria a nação da tirania de Roma, dando início à era de paz e prosperidade prometida pelos profetas. O forasteiro da Galileia tinha a genealogia correcta. E não era, também, um fazedor de milagres e prodígios, curando doentes e exorcizando demónios? Ele era, claramente, uma escolha de Deus. Agora, deveria optar por uma noiva na tribo de Benjamim, pois estava escrito no primeiro livro da Tora que o cálice de prata encontrava-se escondido na saca de Benjamim. De acordo com os seus inspiradores mestres, isso queria dizer que uma mulher da tribo de Benjamim seria o instrumento para a reconciliação e o restabelecimento de Israel. Nada disso tinha importância para Miriam. Os mais velhos podiam apresentar os motivos que quisessem para a decisão que tomaram. Mas não eram capazes de ouvir o sangue cantarolando nas suas veias, não tinham como escutar a música silenciosa do seu coração: não faz diferença por que ele me escolheu, o importante é que fui a escolhida!» In Margaret Starbird, Maria Madalena e o Santo Graal, Mulher do Vaso de Alabastro, Quetzal Editores, colecção Referências, ISBN 978-972-564-624-3.

Cortesia deSextante/QuetzalE/JDACT

Religião no 31. A Mulher do Vaso de Alabastro. Margaret Starbird. «Vamos partir agora, disse ele, suavemente. Deixei os jumentos amarrados no portão. Falei com Lázaro e Marta. Vamos mandar buscá-los quando o perigo cessar»

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«(…) Shalom, Miriam. Sou eu, Yosef. A figura esguia à frente de Yosef relaxou visivelmente ao ouvir aquela voz familiar. Oh, Yosef, a sua voz ficou embargada. Ele a olhou intensamente, com enorme compaixão. Ela estava pálida e emocionada, mergulhada em imensa dor. Ele ergueu a mão, um gesto involuntário para transpor a escuridão perfumada que os separava naquele jardim à luz da lua. Yosef, sussurrou ela, não sei se vou conseguir suportar. Ele tentou prevenir-me, e eu pensei que havia entendido. Ela tremia. O seu corpo estremecia na escuridão. Yosef tomou-a pelos ombros e segurou-a com firmeza. Ele não havia percebido a profundidade da sua própria dor até aquele momento. O cabelo longo e escuro da moça reflectia a luz da lua, as lágrimas faziam os seus olhos brilharem. Miriam, disse ele, suavemente. Mas parou de falar, hesitante. Será que ela já não estaria angustiada demais? Mas ele prometera ao amigo que a protegeria. E só havia uma maneira de fazê-lo: precisavam sair dali imediatamente, aproveitando a escuridão da noite. Ninguém poderia prever quando as autoridades apareceriam para buscá-la. Miriam, eu recebi um aviso. Temos que sair de Jerusalém esta noite. Não é seguro continuar aqui. Pilatos e Herodes Antipas podem estar à sua procura. Ela virou-se de costas para Yosef, os olhos perdidos na escuridão. Lentamente, voltou-se de novo para ele.
Acha mesmo que preciso fugir?, a sua voz era quase inaudível. Ele hesitou. Precisa, sim, Miriam. É a única maneira. Prometi a Yoshua que a protegeria com a minha vida. Não há outra escolha. Ela fez um gesto, demonstrando compreender. Está certo, Yosef. Eu sei. Ele leu para mim as palavras de Miquéias, o profeta. Eu compreendo. É por causa da promessa. Vou fazer como me pediu. Mas o que faremos com Marta e Lázaro? Yosef balançou a cabeça. Eu não lhes contei para onde iremos. Disse apenas que vou escondê-la na cidade. Até que o perigo acabe, ninguém deve saber que vamos partir. Por enquanto, Marta e Lázaro ficarão aqui. Eles dirão que está doente, para que não sintam a sua falta. Mais tarde, mandaremos buscá-los. Yosef havia planeado tudo: viajariam como pai e filha, evitando ao máximo atrair a atenção. Ninguém deveria saber qual era a identidade da jovem que o acompanhava. As autoridades pensavam que eles tentariam fugir pelo mar, por isso os portos seriam os locais mais perigosos. Em vez disso, preferiu seguir com ela por terra, atravessando o deserto. Ele havia separado alguns artigos de primeira necessidade para a jornada, mas dependeriam de amigos para ajudá-los até que chegassem ao destino planeado. Fugiriam para o Egipto, para Alexandria.
Ele sorriu, um sorriso abatido. A juventude e a beleza de Miriam eram tão cativantes... A Magdal-eder, a fortaleza da filha de Sião, a torre do rebanho. Ela precisava partir, aventurar-se pelos campos, viver no exílio. Exactamente como o profeta Miquéias prenunciara. Mas, por meio dela; a soberania seria devolvida a Sião. Mais uma vez, ele se sentiu maravilhado ao se lembrar do amigo que lhes mostrou os versículos da profecia de Miquéias, falando do exílio, do retorno e do restabelecimento da casa real de David. Ele, Yosef de Arimateia, recebera a responsabilidade de zelar pela segurança de Miriam. E não decepcionaria o amigo.
Vamos partir agora, disse ele, suavemente. Deixei os jumentos amarrados no portão. Falei com Lázaro e Marta. Vamos mandar buscá-los quando o perigo cessar. Prometo. Ela sabia que o amigo estava certo. Ficara o dia inteiro pensando que seria preciso fugir do ódio e da inveja de Herodes Antipas, tão inseguro do próprio trono ao ponto de não tolerar nenhum rival. E dos romanos também. Eles temiam uma insurreição da nação judaica. O ódio dos judeus pelas forças romanas de ocupação era intenso. E seu amor e entusiasmo pelo Filho de David, que fora tão brutalmente executado, poderia iniciar uma revolução a qualquer momento. Era melhor que fugisse, para que os rumores sobre o desaparecimento do corpo não gerassem um confronto suicida do povo contra o poder das legiões romanas. Mesmo sendo ainda tão jovem, ela sabia disso. O seu marido lhe havia explicado tudo, segurando-a gentilmente enquanto ela derramava lágrimas no aconchego dos seus ombros. Ele tentou confortá-la; e, pelo bem do homem a quem amava, ela tentara ser corajosa. Mas não conseguiu e pôde ver nos olhos dele toda a angústia que sentia pelo destino da mulher. Estou pronta, Yosef. Vamos partir». In Margaret Starbird, Maria Madalena e o Santo Graal, Mulher do Vaso de Alabastro, Quetzal Editores, colecção Referências, ISBN 978-972-564-624-3.

Cortesia deSextante/QuetzalE/JDACT

No 31. Páscoa. A Mulher do Vaso de Alabastro. Margaret Starbird. «Também são muito significativas as numerosas aparições recentes da Virgem Maria, a única imagem de deusa permitida pela cristandade»

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«(…) Existem várias possibilidades sobre a heresia do casamento de Jesus. Talvez ela seja autêntica e tenha sobrevivido porque os que a defendiam não apenas acreditavam nela como sabiam que era verdadeira (por exemplo, por meio de provas como o célebre tesouro dos templários: sob a forma de documentos ou artefactos genuínos). Ou talvez ela tenha sido disseminada na tentativa de devolver o princípio do feminino perdido ao dogma cristão, que estava claramente desequilibrado em favor do masculino. Essa restauração do equilíbrio dos opostos, base da filosofia clássica, pode ter sido considerada necessária para o bem-estar da civilização. O culto do feminino floresceu em Provença no século XII. Tentativas confluentes dos cabalistas judeus de resgatar a Senhora Matronit como a esposa perdida de Jeová, na mitologia judaica, comprovam o facto de que esse resgate do feminino era visto como importante, ou mesmo vital. Um movimento semelhante acontece hoje no mundo ocidental, revelando-se em estudos junguianos na área da psicologia, nos conceitos asiáticos do yin/yang e na consciência da deusa. Também são muito significativas as numerosas aparições recentes da Virgem Maria, a única imagem de deusa permitida pela cristandade. E as suas imagens têm sido vistas derramando lágrimas em igrejas cristãs por todo o mundo. Esses fenómenos vêm ganhando destaque na comunicação social nos últimos nos. Até as pedras choram! O feminino desprezado e esquecido está suplicando para ser reconhecido e abraçado por nossa era moderna.
A perda do feminino teve um impacto desastroso na nossa cultura. Masculino e feminino estão profundamente feridos neste início do terceiro milénio. As dádivas do feminino não foram aceitas ou apreciadas por completo. Enquanto isso, o masculino, frustrado pela incapacidade de harmonizar as suas energias com um feminino bem desenvolvido, continua a liderar o mundo empunhando a espada, brandindo armas irresponsavelmente, atacando com violência e destruição.
No mundo antigo, o equilíbrio entre as energias opostas era compreendido e respeitado. Mas, no mundo moderno, as atitudes e os atributos masculinos têm dominado. A adoração do poder e da glória do princípio masculino/solar está a poucos passos da adoração do filho: um culto que, com frequência, produz um homem mimado e imaturo- zangado, frustrado, entediado e, muitas vezes, perigoso. Sem poder integrar-se à sua outra metade, o masculino se exaure. O resultado final do princípio feminino desvalorizado não é apenas a poluição ambiental, o hedonismo ou a criminalidade desenfreada. O resultado fundamental é o holocausto. Este livro é uma exploração da heresia do Santo Graal e um argumento a favor do resgate da mulher de Jesus, com base em importantes provas circunstanciais. É também uma busca do significado da Noiva Perdida na psique humana, na esperança de que seu retorno ao nosso paradigma de completude possa nos ajudar a restaurar a terra infértil. Aqui, registei os resultados da minha busca pessoal pela Noiva Perdida na história cristã. Procurei explicar de que modo ela foi esquecida e como esse facto tem sido devastador para a civilização ocidental.
Tentei, ainda, visualizar o que aconteceria se conseguíssemos restituí-la ao paradigma. Os anos que passei pesquisando acarretaram consequências. Levei o assunto a sério. Doutrinas nas quais acreditei pela fé tiveram que ser arrancadas e descartadas para que novas crenças fossem plantadas e cuidadas até formarem raízes. Toda a estrutura da Igreja Católica da minha infância precisou ser desmontada para deixar à mostra a perigosa falha existente em suas fundações, permitindo que um novo sistema de crenças pudesse ser cuidadosamente reconstruído quando a fissura tivesse se fechado. Esse processo durou muitos anos. Em algum momento, desisti de ser apologista da doutrina e embarquei na busca pela verdade. Estou dolorosamente consciente de que minhas conclusões não são ortodoxas, mas isso não significa que não sejam verdadeiras. Muitas pessoas estão se tornando cada vez mais conscientes do abismo que separa as descobertas dos modernos estudiosos da Bíblia da versão de cristandade ensinada nos púlpitos das igrejas.

Miriam do Jardim
Ela sentiu um calafrio ao enrolar-se no manto e cobrir o corpo delgado. O tempo estava frio. O sol flamejante já se havia escondido além do muro do jardim, atrás do Templo do Monte Sião. As fragrâncias no ar a acalentavam, suavizando seus nervos retesados, enquanto permanecia sentada no banco de pedra sob a amendoeira. O brilho prateado do luar lançava sombras na passagem que levava até ao portão. Ela esfregou os dedos dos pés na areia macia, formando pequeninos montes de terra seca. Um leve barulho de passos assustou-a. Tentou distinguir de quem era o vulto cujo rosto estava na sombra e que tinha o corpo coberto por um manto escuro. O homem a observou em silêncio por alguns instantes. Como um passarinho. Tão vulnerável, pensou ele. O homem falou num sussurro, tentando não assustá-la». In Margaret Starbird, Maria Madalena e o Santo Graal, Mulher do Vaso de Alabastro, Quetzal Editores, colecção Referências, ISBN 978-972-564-624-3.

Cortesia deSextante/QuetzalE/JDACT

sexta-feira, 30 de março de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. «À noite, acamparam fora dos muros da cidade, assim como outros milhares de peregrinos, estendendo-se em sua volta como se fosse uma segunda muralha»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) O tumulto aumentava à medida que os grupos se aproximavam da cidade, e as suas fileiras inchavam quando se juntavam. Era uma massa feliz e alegre de gente, impelida por uma combinação de temor e fé religiosos. Mais à frente, outras carruagens desciam as ladeiras, aos solavancos, e as canções de outros peregrinos enchiam o ar, com a batida de pratos e o repicar dos tamborins. A grande porta do lado norte estava aberta; uma porção de mendigos e leprosos lamentava-se, pedindo esmolas, e quase foram esmagados pela multidão que chegava. Maria viu alguns soldados romanos, a cavalo, olhando e atentos para o caso de qualquer problema. Seus capacetes, com um penacho, pareciam ameaçadores contra o céu azul. Os viajantes diminuíram o ritmo, quase para um passo de tartaruga, ao chegarem à porta; a mãe de Maria segurou-a junto de si, pela pressão exercida pela multidão à sua volta; de repente, todos se sentiram apertados e conseguiram atravessar a porta e entrar na cidade de Jerusalém. Mas não havia tempo para parar e admirar as coisas; a massa que vinha atrás empurrava todo o mundo para a frente. Aah!, exclamavam as pessoas à sua volta, em sinal de admiração.
À noite, acamparam fora dos muros da cidade, assim como outros milhares de peregrinos, estendendo-se em sua volta como se fosse uma segunda muralha. Sempre ocorria isso por ocasião das grandes festas; às vezes, meio milhão de peregrinos convergia para a cidade, que, naturalmente, não os podia alojar. E assim, uma segunda Jerusalém espalhava-se em torno da cidade. Risadas, canções e vozes animadas chegavam de outras barracas e fogueiras, as pessoas visitavam umas às outras, buscando parentes e amigos de outros vilarejos. E os judeus estrangeiros, que haviam viajado grandes distâncias para orar no Templo, sobressaíam pelas suas barracas estranhas: tinham cúpulas, pavilhões de seda e as entradas eram ornamentadas. Embora alguns deles vivessem longe das suas terras ancestrais por mais de dez gerações, ainda consideravam o Templo o seu lar espiritual.
Maria fechou os olhos, tentando dormir. Mas era difícil, com a algazarra da festa em sua volta. Em vez de Jerusalém, tornou a sonhar com o misterioso bosque de árvores com estátuas. O branco das estátuas na sua base de mármore, visível no luar do sonho, parecia flutuar com espuma nas ondas do oceano. O sussurro das árvores, a glória do mármore iluminado pela luz do luar e as promessas de segredos perdidos rodopiavam, como um turbilhão, nos seus sonhos.  Levantaram-se quando ainda estava escuro e começaram a preparar-se para entrar de novo na cidade, desta vez para cumprir os rituais da festa. Maria estava tão curiosa para ver o Templo, que tremia. Hoje, dia da festa, a multidão era ainda maior que na véspera. Rios de pessoas obstruíam as ruas, pressionando de tal forma as paredes das casas que quase parecia que estas não resistiriam aos empurrões. Alguns dos peregrinos eram bastante curiosos: os que vinham da Frígia, suando sob os seus pesados capotes de pele de cabra; outros, da Pérsia, com roupas de seda e brocados de ouro; os fenícios, com as suas túnicas e calças listradas; os babilónios, com os seus mantos pretos, sombrios. Embora todos se empurrassem uns aos outros, ansiosamente, na direcção do Templo, pareciam menos piedosos que vorazes, como se ali houvesse algo que estavam prontos a devorar.
Ao mesmo tempo, os barulhos da cidade começavam a fundir-se numa zoada. Os berros dos vendedores de água, certos de que fariam bons negócios, os cânticos dos peregrinos, a gritaria dos mercadores, que esperavam vender bijuterias e véus, e, acima de tudo, os balidos dos rebanhos de ovelhas sendo levadas ao Templo, para sacrifício, tudo isso ressoava como um estrondo doloroso. De algum lugar, bem ao longe, ouviram-se explodir as trombetas de prata do Templo, anunciando a celebração». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

A Verdadeira História. Margaret George. «Pararam os nossos pés junto às suas portas, ó Jerusalém! Para onde sobem as tribos»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Mas que decepção... Então, faziam uma viagem longa como essa só para dar o cereal de presente e depois pegá-lo de volta, sem que tivesse sido tocado? Compreendo, disse, por fim. Mas nós não plantamos trigo, enfatizou. Será que não deveríamos ter trazido peixe? Aquele peixe que curtimos? É só simbólico, encurtou Eli. Talvez fosse melhor se falássemos sobre o Templo, disse Silvanus. É mais simples. E então, enquanto o sol se punha por detrás de seus ombros, discutiram o Templo. De sua importância para o povo judeu. De ser este o terceiro Templo construído, já que os dois anteriores haviam sido destruídos. Na realidade, era tão importante que fora a primeira coisa que os exilados haviam reconstruído, ao voltarem da Babilónia, 500 anos antes. Nós somos o Templo e o Templo é o nosso povo, disse Natã. Não podemos existir, como um povo, sem o Templo. Que ideia assustadora: os judeus só podem existir se o prédio estiver construído. Maria sentiu um arrepio. E se fosse destruído? Mas isso não iria acontecer. Deus não o permitiria. Hirão, um ancestral nosso, trabalhou na construção do Templo de Salomão, disse Natã. Procurou por alguma coisa no seu pescoço, e puxou por um fio com uma pequena romã, de latão. Isto é o que ele fez, disse, passando a Silvanus, que o examinou, pensativo, antes de passá-lo a Eli.
Fez muitas coisas mais, grandes, pilares de bronze e capitéis, fundidos em enormes moldes de cerâmica, mas isto foi o que fez para sua mulher. Mil anos atrás. E nós o guardamos e passamos, entre nós, desde então. Até o levamos para a Babilónia, mas o trouxemos de volta. Quando chegou a Maria, ela segurou-o com reverência. Só por sua idade, parecia imensamente sagrado. O tetravô de meu tetravô fez isto, com suas próprias mãos, pensou. As suas mãos, que agora são pó, fizeram isto. Segurou-o, fazendo-o rodar, devagar, em torno da correia. A luz do entardecer brincava na sua superfície, na parte arredondada do fruto e nas quatro saliências, em forquilha, nos vértices, representando a origem. Ele captara a forma da romã, fundindo-a, de forma perfeita, simétrica e ideal.
Sem ousar ao menos respirar na sua presença, ela devolveu-o a seu pai. Ele colocou-o no pescoço e puxou-o para baixo, para o peito. Portanto, como vocês podem ver, a nossa romaria não é uma coisa à toa, disse, finalmente, acariciando, sob a sua roupa, o lugar onde ficava o talismã. Nós a fazemos em nome de Hirão e dos últimos mil anos. Cedo, ao amanhecer, as barracas já estavam sendo desarmadas, os animais carregados e as mães chamavam os filhos. Quando Maria acordou, teve a estranha impressão de já ter estado no Templo e de lembrar-se das fileiras de estátuas de deusas..., num bosque de árvores bem altas, cujos picos, verde-escuros, balançavam ao vento. O Templo a chamava, mas também a chamava o sopro de vento do bosque de ciprestes. Levantaram-se e, em pouco tempo, já estavam a caminho. A caravana inteira parecia mover-se com mais energia, como se tivessem acabado de começar a viagem e não estivessem caminhando há três dias. A magia de Jerusalém os atraía.
No final da tarde, já haviam chegado ao topo de uma das colinas que cercam a cidade. A caravana inteira parou para olhar. Lá em baixo, em meio às rochas amareladas e douradas, espalhava-se Jerusalém. Dentro dos seus muros, a cidade subia e descia, de acordo com os níveis do terreno. Aqui e ali, uns pontos brancos, que eram palácios de mármore entre os prédios de calcário; e, erguido sobre um planalto esplêndido dourado e branco, estavam os locais do Templo. Ficaram todos mudos, em silêncio. Maria olhava, boquiaberta, muito jovem para sentir a agitação que a fé religiosa provocava nos mais velhos, que só viam a pureza branca do Templo, a luz dourada que parecia diferente de qualquer outra que ela vira, descendo do céu, com suas mãos compridas, para tocar a cidade.
Outros grupos se juntaram, nas colinas. Várias carruagens, ornamentadas, que traziam frutos das primeiras colheitas de cidades cujos moradores não poderiam vir nesse ano, também se aproximaram do aglomerado. As carruagens tinham sido carregadas de acordo com a tradição: cevada, no fundo, depois o trigo e as tâmaras, depois romãs, depois figos e azeitonas e, por cima de tudo, uvas. Logo estariam passando, retumbantes, pelas ruas de Jerusalém, e seriam apresentados aos religiosos. Vamos cantar! Vamos cantar!, gritou alguém. Vamos cantar e rejubilar-nos de que nos seja permitido vir a Deus e ao seu Templo! E, na mesma hora, cerca de mil vozes começaram a cantar os Salmos, que conheciam tão bem, celebrando a ascensão a Jerusalém.

Pararam os nossos pés junto às suas portas, ó Jerusalém!
Para onde sobem as tribos, as tribos do Senhor,
Como convém a Israel.
Orai pela paz de Jerusalém!
Sejam prósperos os que te amam.
Reine paz dentro de teus muros
e prosperidade nos teus palácios.

Agitando ramos de palmeira, desceram ansiosamente a última colina, para convergir em Jerusalém. Os muros, e a porta por onde entrariam, já se viam, à frente». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

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A Verdadeira História. Margaret George. «Eli resmungou. Bom, pelo menos ele é judeu, disse Silvanus, mas num tom que Maria percebia que ele queria dizer o contrário»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Um novo entardecer, mais um acampamento antes de Jerusalém. Enquanto montavam as suas tendas, Maria percebia a excitação dos adultos, agora que se aproximavam da cidade. Desta vez, o chão sob as mantas em que Maria se deitou era firme e liso, mostrando que nada havia por baixo. Maria sentiu-se um pouco decepcionada, como se esperasse encontrar algo de exótico e proibido a cada paragem que faziam naquela terra estranha. Cuidadosamente, desatou o seu cinto onde estava a figura gravada e guardou-a, envolta, próximo da cabeça. Não iria arriscar levá-la lá para fora, onde havia tanta gente. E o pobre bracinho do deus mutilado também ficou guardado. Mas ela estava consciente deles o tempo todo, como se a chamassem, a atraíssem. Lutando contra o sono, perguntava-se o que encontrariam no Templo. Em torno da fogueira, quando comiam, Eli disse: imagino que a caravana inteira será revistada, só por sermos galileus. Sim, e provavelmente também haverá mais guardas no Templo, acrescentou Natã. Muitos guardas. Dizia-se que havia ocorrido algum tipo de problema, causado por um rebelde da Galileia. Judas, o galileu, e a sua turma de bandidos!, disse Silvanus. Onde é que pensava que poderia chegar com essa revolta? Estamos sob controle dos romanos, e se eles decidem cobrar impostos, nada podemos fazer. Com essa resistência patética, só faz as coisas piorarem para nós, que sobramos. Mas... Eli demorou um pouco, mastigando, enquanto terminava o seu pensamento. Às vezes os homens podem ser tomados por um sentimento de desespero e abandono e sentirem a necessidade de agir, mesmo que a sua acção seja fútil. Mas pode ter certeza de que a festa em Jerusalém será tranquila, disse Silvanus. Os romanos cuidarão disso. Fez uma pausa. E fica contente em saber que temos o nosso reizinho, Herodes Antipas, lá na Galileia, cuidando de todos nós, não fica?
Eli resmungou. Bom, pelo menos ele é judeu, disse Silvanus, mas num tom que Maria percebia que ele queria dizer o contrário. Uma imitação bastante pobre, como foi seu pai!, disse Eli, respondendo à provocação. Filho de uma samaritana e de um pai indomeu! Descendente de Esaú! E pensar que temos de fingir que... Silêncio!, advertiu Natã. Não se fala dessas coisas em voz alta fora de casa. Depois, riu, tentando brincar. E como pode dizer que o pai dele não foi um bom judeu? Não construiu aquele belo templo? Não era necessário, respondeu Eli. Bastava o templo original. Para Deus, talvez, concordou Natã. Mas as pessoas querem lugares em que os seus deuses estejam como estão os seus reis. Deus, em geral, quer mais, ou menos, do que lhe oferecemos.
Seguiu-se um silêncio profundo, pois o súbito comentário atingiu ambos os irmãos pela verdade. Rompendo o silêncio, Eli disse: Maria, conte-nos como é a Festa das Semanas. Afinal, é isso que iremos comemorar. Ser o centro das atenções pôs Maria na defensiva. Qualquer outro poderia responder melhor à questão do que ela. É..., é uma das três grandes datas que o nosso povo comemora, disse. Mas é o quê?, insistiu Eli, como se fosse um examinador. E, concretamente, vinha a ser o quê? Havia uma história do cereal estar maduro e de tantos dias depois da Páscoa... É 50 dias depois da Páscoa, disse Maria, tentando lembrar. Também tem alguma relação com o cereal estar maduro. Que tipo de cereal? Pare com isso, Eli!, disse Silvanus. Nem sabia disso quando tinha 7 anos. É cevada..., ou é trigo, acho eu, tentou Maria. Trigo! É a primeira colheita de trigo, que oferecemos a Deus, disse Eli. A história é essa. As oferendas são depositadas no Templo. E o que é que ele faz com elas?, perguntou Maria, imaginando que Deus soltaria um fogo imenso que queimaria todas as oferendas. Depois do ritual, são devolvidas aos fiéis». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

quinta-feira, 29 de março de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. «Quando o rabino começou a partir as figuras com um porrete, Maria chegou a pensar se também deveria atirar o seu para junto dos outros»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Eli, sisudo, preparava-se para responder quando, de repente, ocorreu uma comoção, lá à frente, e a caravana parou. Natan deixou o grupo e correu para lá. Mas a notícia espalhou-se pelo grupo muito antes que Natan chegasse à frente da caravana. Ídolos! Um esconderijo de ídolos! Rapidamente, a caravana transformara-se numa massa única e todos corriam para a frente, para ver os ídolos. O clima era de excitação, quem, de entre eles, teria realmente visto um ídolo dos antigos? Havia os modernos ídolos romanos, naturalmente, embora mesmo esses estivessem confinados a cidades como Séforis, na Galileia, que poucas das pessoas da caravana teriam ousado visitar. Mas ídolos antigos! Aqueles ídolos lendários que os profetas amaldiçoavam e que tinham levado à ruína e ao exílio dois reinos: o do norte de Israel e o de Judá. Até os seus nomes eram pronunciados com uma espécie de medo: Baal. Astarte. Moloc, Dagon. Merodac. Baal-Berit. Um rabino de Betsaida estava em pé à beira da estrada, perto de umas camadas rochosas com uma pequena abertura, onde dois dos seus assistentes escavavam e retiravam objectos embrulhados. Uma fila deles encontrava-se já pelo chão, jazendo como guerreiros mortos.
A marca era perfeitamente visível!, gritava o rabino, apontando a rocha que cobria a entrada da gruta. Por que é que ele acha que tem o direito de a abrir? Perguntava-se Maria. Eu sabia que era coisa do mal!, gritou o rabino, como se respondesse à pergunta silenciosa de Maria. Devem ter sido escondidos há muito tempo, na esperança de que os seus donos voltassem para os recuperar, restaurar e recolocá-los em locais altos, ou onde quer que fosse, para serem adorados. Mas talvez tenham morrido na Assíria, o que foi justo. Desembrulhem-nos!, gritou para os seus assistentes. Desembrulhem-nos, para que os possamos partir e destruir! Que horror! Ídolos! Todas as abominações devem ser destruídas! As ligaduras de pano amareladas tinham-se deteriorado de tal forma que era difícil desenrolá-las, e o rabino ordenou que as cortassem com facas. Surgiram figuras de cerâmica, rústicas, com olhos protuberantes, e braços e pernas que pareciam de pau. Maria apertou com firmeza o tesouro que escondera no seu cinto. O seu não era feio como aqueles, era lindo.
Quando o rabino começou a partir as figuras com um porrete, Maria chegou a pensar se também deveria atirar o seu para junto dos outros. Mas a ideia daquele belo rosto a ser destruído era dolorosa. E ficou a olhar para os ídolos, abandonados àquela chuva de cacos. Um pedaço de um braço minúsculo pousou na sua manga, e ela pegou nele e examinou-o. Parecia um pequeno osso de galinha. Parecia até ter garras. Sem pensar, enfiou-o também no seu cinto. Quem achas que eram?, perguntou Silvanus, de repente. Talvez fossem deuses dos cananeus. Podiam ser qualquer coisa. Uma chuva de pedaços de ídolos caiu sobre eles. - Bem, o que quer que fossem, deixaram de ser. Desapareceram para sempre. Mas um deus podia desaparecer para sempre? Um deus podia ser destruído? Perguntava-se Maria. Ai daquele que diz à madeira: acorda! E à tosca pedra: desperta!, gritava o rabino, golpeando os ídolos, uma última vez, com o seu porrete. Como pode uma coisa destas proferir oráculos? Estão a ver? É revestido a ouro e prata, mas não existe vida dentro dele. Fez uma pausa, abanando a cabeça em sinal de satisfação. Depois, apontou em direcção a Jerusalém e, com uma voz de júbilo, citou os versos do profeta Habacuc: o Senhor, porém, está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra! Ergueu o seu cajado. Amanhã, meus amigos! Amanhã
veremos o Templo sagrado! Abençoado seja o único e eterno Senhor! E cuspiu no que restava dos ídolos». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

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Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês. Reflexões historiográficas. José D’Assunção Barros. «Daí o papel simbólico do marido ciumento, traído, ou desprezado secretamente pela esposa em favor do amante cortês»

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«(…) O Amor Cortês pode ser apontado como um momento inovador na complexa história humana dos modos de sentir e de suas formas de expressão. A sua emergência através da poesia trovadoresca deixou tão indeléveis marcas no repertório ocidental de possibilidades estéticas de expressar e vivenciar o amor, e na própria imaginação do homem ocidental pertencente à temática amorosa, que frequentemente se aponta o despontar dos trovadores medievais no século XII como o instante mesmo da invenção do amor romântico no Ocidente. Em que consistia, antes de mais nada, este Amor Cortês que rapidamente se difundiu na Europa a partir das cantigas dos trovadores do sul da França, das suas próprias vidas, ou dos romances que tiveram na história de Tristão e Isolda o seu exemplo mais extremado e no Lancelote de Chrétien de Troyes a sua exposição mais sistemática? Antes de tudo, conheçamos as personagens fundamentais do Amor Cortês. No centro de tudo, um Amador que se entrega de corpo e alma a uma paixão incontrolável e ao dedicado serviço amoroso da mulher amada. E ela: uma Dama que, aos olhos do amante apaixonado, é a mais bela e perfeita de todas as mulheres. Uma Dama, deveremos acrescentar, que é em geral inatingível, ou por estar espacialmente inacessível (talvez por morar num país distante) ou, quem sabe neste caso um obstáculo ainda mais intransponível, por ser socialmente inacessível. Nesta última situação aparece eventualmente um terceiro personagem: o marido da dama, já que com alguma frequência a mulher eleita pelo trovador provençal ou pelo herói do romance cortês é casada ou comprometida (via de regra com um poderoso senhor feudal). Por fim, os personagens coadjuvantes: em alguns casos um confidente da confiança do trovador apaixonado, e em outros casos os delactores, os aduladores, os intrigantes, os maledicentes da vida amorosa e os bisbilhoteiros, globalmente classificados como losengiers pelas cantigas trovadorescas, que estão sempre prontos a denunciar o caso de amor ou a difamar os seus envolvidos. Envolvendo tudo, um Amor tão extremado quanto ambíguo, trazendo no mesmo movimento uma indisfarçável carga de erotização e uma dimensão idealizada, ao mesmo tempo em que carrega a mistura dramática que faz com que este amor subtil tanto enobreça e ensine aquele que ama, como o empurre tragicamente em direcção ao sofrimento e até à morte. Completam o conjunto de sentimentos que o Amor Cortês envolve o desejo, maior do que tudo no mundo, mas irrealizável sob pena de que se acabe o próprio amor, e o perigo de que este amor seja descoberto, e que isto acarrete no fim da relação amorosa ou abale a reputação da dama.
Todos estes elementos habitam o plano da sensibilidade e, talvez pela primeira vez com tal intensidade, ameaçam trazer o sentimento para um lugar destacado no cenário medieval, acima mesmo da fé religiosa, da razão erudita, do utilitarismo quotidiano. Conclamar uma autonomia dos sentimentos implica naturalmente na possibilidade de uma nova proposta de leitura das relações entre os dois sexos, relações que, do ponto de vista da cortesia, não deveriam ser mais regidas exclusivamente pela força, pelo instinto, pelo interesse, pelo acomodamento entediante. Não é de se estranhar que o Amor Cortês tenha apresentado uma decisiva faceta anti-matrimonial, já que o casamento era precisamente o território da sujeição do feminino pelo masculino, do acomodamento do indivíduo aos interesses sociais e familiares, da tutela religiosa através do sacramento. Daí o papel simbólico do marido ciumento, traído, ou desprezado secretamente pela esposa em favor do amante cortês. Este marido, entrincheirado de dentro do casamento oficial, representa o mundo da ordem contra o qual se insurge a primazia dos sentimentos proposta pelo Amor Cortês». In José D’Assunção Barros, Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês, Reflexões historiográficas, 1995, revista Alethéia, UFG, Abril/Maio, 2008.

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Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês. Reflexões historiográficas. José D’Assunção Barros. «No sul occitânico o subconjunto provençal dos troubadours, da langue d'oc e da civilização cátara, berço do amor cortês»

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«(…) Todos estes universos trovadorescos guardam as suas próprias especificidades. Mas existem certas características comuns que tocam todo o grande conjunto de poetas-cantores medievais, como a itinerância de boa parte de seus participantes ou a oralidade da sua produção. A entender por estes critérios, a cultura medieval contou com uma longa duração de movimentos trovadorescos nas várias partes da Europa (a partir da Idade Moderna esta longa duração desfaz-se num mundo que será progressivamente tomado pelo predomínio da escrita, pela separação entre poesia e música, pela profissionalização mais estabilizadora do artista, e por toda uma série de novas práticas que deixarão o mundo dos trovadores medievais para trás). E, contudo, naquela espécie de longa duração trovadoresca marcada pela itinerância e pela oralidade se inscrevem as durações mais curtas, compreensíveis a partir de um enfoque historiográfico que permite isolar os diversos trovadorismos de acordo com as sociedades que os envolvem. É aqui que surge uma acepção mais restrita para a designação trovadores. Segundo esta, o movimento trovadoresco pode remeter a uma realidade mais específica, como a das cortes régias e senhoriais a partir do século XI, quando a cultura aristocrática assimila a produção poético-musical como uma de suas actividades distintivas. Os historiadores puderam debruçar-se mais especificamente sobre estes trovadores cortesãos que actuaram no Ocidente Europeu entre os séculos XI e XIV porque eles deixaram muitos registos, seja sob a forma de cantigas das quais se conhece a poesia e a música que foram anotadas em grandes códices de manuscritos palacianos, seja sob a forma de relatos acerca de suas vidas que nos foram legados pelos cronistas da época e por textos difundidos pelos próprios trovadores. É frequentemente a este universo trovadoresco mais singular que muitos historiadores se referem quando utilizam a designação trovador. Assim, esta acepção mais restrita representa uma espécie de recorte, no espaço social e no tempo, dentro da produção trovadoresca mais ampla. Refere-se pois à poesia, popular ou aristocrática, que circulava no meio cortesão, notando-se que desta circulação participavam os mais diversos tipos sociais. Além disso remete a um período que vai do século XI ao XIV, estendendo-se ao século XV em algumas cortes alemãs. É a esta contribuição trovadoresca mais específica que nos referiremos a partir daqui. Tal como foi dito, característica comum à boa parte dos trovadores medievais de que trataremos aqui era a sua itinerância, ainda que esta não deva ser exagerada, já que muitos trovadores se estabeleciam a seu tempo em alguma corte ou região. Ser um meio movente traz uma efervescência especial ao meio trovadoresco. O trovador liga-se por esta afinidade àquelas figuras do cavaleiro andante, do clérigo errante, do mercador e navegante, cada qual um elemento importante no processo de transformação da sociedade medieval a partir do século XI. Ao mesmo tempo, a itinerância punha em contacto todos os trovadores, facilitava as trocas culturais e criava uma grande malha que recobria todo o Ocidente Europeu com o seu tecido de versos e sonoridades. O grande concerto dos poetas-cantores tinha contudo os seus timbres internos. Para efeito de simplificação, consideremos as cinco principais regiões culturais em termos de produção trovadoresca. A França via-se então dividida culturalmente em norte e sul, daí gerando dois subconjuntos distintos e separados pela linguagem. No sul occitânico o subconjunto provençal dos troubadours, da langue d'oc e da civilização cátara, berço do amor cortês. No norte, os trouvères, cantando na langue d'oil as primeiras canções de gesta. Em torno do vale do Pó, foi mais tardio o movimento dos trovadores italianos, dando origem ao chamado dolce stil nuovo. Na Alemanha, a Minnesang contribuía com a sua versão germânica para o amor cortês (minne = amor subtil) e para outros géneros trovadorescos. Finalmente, o subconjunto dos trovadores galego-portugueses, que unificava através de uma língua poética comum boa parte da península ibérica cristã (com excepção de Aragão e da Catalunha, mais ligados ao circuito provençal). Dos cinco subconjuntos destacados, o Provençal pode ser tomado como o grande pólo de irradiação que detonou o trovadorismo de corte. A grande novidade trazida por estes troubadours do sul occitânico (cortes da Provença, Toulouse, região da Catalunha) foi sem sombra de dúvida o Amor Cortês. Explica a sua irresistível difusão por toda a Europa Feudal o facto de que este novo modelo do sentir estava em imediata sintonia com os valores feudo-vassálicos do seu tempo, com formas apaixonadas de religiosidade que então surgiam, com necessidades sociais inter-familiares que proporcionaram não apenas o surgimento dos trovadores, mas também dos cavaleiros andantes em busca de aventuras e de oportunidades. É esta contribuição mais específica do Amor Cortês que enfocaremos agora. Ela não é a única contribuição do trovadorismo para a cultura medieval e para a história do pensamento do homem ocidental, mas seguramente é a mais impactante». In José D’Assunção Barros, Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês, Reflexões historiográficas, 1995, revista Alethéia, UFG, Abril/Maio, 2008.

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quarta-feira, 28 de março de 2018

Os Trovadores Medievais e p Amor Cortês. Reflexões historiográficas. José D’Assunção Barros. «Os trovadores medievais ajudaram certamente a escrever um dos capítulos mais fascinantes da História da Cultura na Idade Média»

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«Entre os séculos XII e XIV, num contexto de desenvolvimento do trovadorismo medieval que inclui dimensões que vão do reflorescimento urbano à expansão feudal, prosperaram em reinos que iam desde a França até aos reinos ibéricos de Portugal e Castela movimentos trovadorescos extremamente significativos que continham entre si similitudes e contrastes. O objecto deste artigo será examinar as relações do trovadorismo medieval com o Amor Cortês, analisando o surgimento de um novo padrão de sensibilidade entre os poetas medievais.
Os trovadores medievais ajudaram certamente a escrever um dos capítulos mais fascinantes da História da Cultura na Idade Média. De certo modo, estes músicos-poetas estão no centro de um novo modo de pensar e de sentir, e é isto o que habilita os historiadores de hoje a avaliarem a sua contribuição muito específica para a cultura medieval. Os próprios trovadores costumavam ver a si mesmos como portadores de um novo tipo de ciência: uma Gaia Ciência, isto é, uma ciência alegre, ou, se assim quisermos, uma ciência gaiata, ao mesmo tempo articulada ao mundo e capaz de transcendê-lo. Mas é verdade que esta gaia ciência, expressão de um aprendizado em que o trovador tornava-se um mestre da arte de viver intensamente, e de transformar a sua própria vida em obra de arte, também podia implicar em sofrimento. O Amor Cortês, criação original dos trovadores que foi tão bem traduzida pelas cantigas trovadorescas de amor e pelos romances corteses do período medieval, não raro podia levar ao desespero, à paixão desmedida, ao desejo de morte diante da impossibilidade de realização da união com a mulher amada. Eis aqui índices extremamente significativos que denotam o surgimento de um novo modelo de sensibilidade amorosa e de atitude estética diante da vida. Mas antes de abordar este ponto, convém situar os trovadores medievais no seu tempo, compreender esta designação que por vezes é tão ambígua, entender o espaço social em que eles se movimentavam. Num sentido mais amplo, pode-se chamar de trovadores a todos os poetas-cantores que percorriam a Europa nos tempos medievais, levando a sua poesia e o seu modo de vida a ambientes tão diversificados como a praça pública, as universidades ou as cortes principescas e aristocráticas. Nesta acepção mais ampla, a designação trovador termina por abarcar realidades tão diferenciadas como a dos skops anglo-saxônicos desde o século IV, a dos escaldos islandeses e noruegueses a partir do século X, a dos trovadores cortesãos do século XII em diante, a dos goliardos desde o século IX, a dos jograis um pouco por toda a Idade Média. E, mesmo tomando mais especificamente um destes tipos, por vezes recaímos em novas designações que são igualmente ambíguas. A designação jogral, por exemplo, é uma das mais vagas, já que por vezes se refere não apenas ao músico-poeta, mas também ao artista saltimbanco, ao histrião, ao malabarista, e a tantos outros profissionais do espectáculo que percorriam o mundo medieval oferecendo a sua arte e os seus serviços.
Compreender a diversidade trovadoresca nestes diversos tempos e sociedades implica na percepção de que os vários tipos de poetas-cantores podiam desempenhar funções diversas nas sociedades em que circulavam. Uns especializavam-se em difundir em verso mitologias povoadas por deuses guerreiros, como é o caso dos eddas noruegueses à época das invasões nórdicas contra o mundo românico; outros eram contratados para louvar dinastias reinantes, como ocorreu entre os reis e chefes guerreiros islandeses que mantinham nas suas cortes grandes círculos de poetas profissionais, os escaldos, para o seu próprio louvor e enaltecimento, e na verdade para a difusão de suas gestas num círculo social mais amplo. Havia os poetas-cantores que se dedicavam à poesia sagrada, como a dos trovadores que se empenharam em produzir cantos para o enaltecimento da Virgem Maria; e, num outro extremo, havia os que resolveram dedicar a vida a uma alegre vagabundagem, como os goliardos que desde o século IX difundiam canções de enaltecimento à vida mundana e sátiras contra uma sociedade que desprezavam. Outros, por fim, especializaram-se nas cantigas de amor, e inventaram mesmo uma nova forma de Amor, como foi o caso dos trovadores cortesãos que começaram a frequentar os palácios medievais a partir do século XII». In José D’Assunção Barros, Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês, Reflexões historiográficas, 1995, revista Alethéia, UFG, Abril/Maio, 2008

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segunda-feira, 26 de março de 2018

O Sebastianismo. José Van Den Besselaar. «Sabemos que, por duas vezes, Bandarra se deteve algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela ‘gente de nação’»

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«(…) Dotado de memória fidelíssima, sabia de cor longos trechos da Escritura Sagrada, sobretudo dos livros proféticos. Quando, depois de restituir o livro ao seu dono, já não se lembrava de um texto bíblico, recorria ao dr. Álvaro Cardoso ou ao clérigo Bartolomeu Rodrigues, que tinham uma Bíblia latina e com ela lhe refrescavam a memória. Assim chegou a ser um oráculo em assuntos bíblicos, sobretudo entre os cristãos-novos, que eram muito numerosos na Beira. O sapateiro devia ter também grandes conhecimentos das profecias atribuídas a Santo Isidoro, através das Coplas do cartuxo castelhano Pedro Frias e outros versejadores espanhóis, entre eles, o frade bento Juan Rocacelsa, monge de Monserrate. Estas coplas convenceram-no da vinda de um Rei Encoberto, predestinado para desbaratar o Império Otomano e estabelecer a Monarquia Mundial. É muito provável que Bandarra tivesse chegado à ideia de compor as suas trovas tomando por exemplo as coplas do país vizinho, tanto mais que estas designavam muitas vezes o futuro Imperador como Infante de Portugal. O sapateiro era sem dúvida, um homem extraordinário, que aliava à memória fabulosa uma grande faculdade assimiladora e o talento de fazer versos em estilo popular.
As suas profecias rimadas, muito mais bíblicas e, igualmente, mais patrióticas que as dos seus modelos castelhanos, difundiram-se rapidamente pelo país, não tardando a encontrar leitores até na capital do Reino. Os cristãos-novos, que já antes o tinham consultado como uma espécie de rabi, passaram agora a venerá-lo como um profeta solidário com eles nas suas esperanças messiânicas. Sabemos que, por duas vezes, Bandarra se deteve algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela gente de nação. O alvoroço que aí causava não podia deixar de despertar as suspeitas da Inquisição (maldita) recém-estabelecida. O poeta foi preso na sua terra e levado para Lisboa (1540). A Mesa ouviu várias testemunhas e, a 3 de Outubro de 1541, impôs-lhe um castigo relativamente brando: o de abjurar solenemente as suas trovas na procissão do auto-de-fé no dia 23 do mesmo mês. Pela sentença se pode ver que Bandarra não era acusado de judaísmo, nem sequer era pessoa suspeita como cristão-novo. O que se lhe imputava era causar alvoroço entre os cristão-novos com as suas trovas, que eles tendiam a interpretar em sentido judaico. Além disso, era intolerável que um homem sem letras se arvorasse em intérprete dos livros sagrados. A lição que a Mesa lhe queria incutir era simplesmente esta: Sapateiro, não vás além do calçado!. A Mesa ordenou ainda que qualquer pessoa que tivesse em seu poder as trovas do dito Bandarra as apresentasse ao Santo Ofício (maldito) dentro de certo prazo.
A partir de 1541 não se soube mais nada do sapateiro de Trancoso. Segundo uma opinião muito divulgada teria falecido por volta de 1550. Mas, como já observou Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, a data da sua morte deve ser posterior a 1556, porque a 23 de Março deste ano foi confirmado na dignidade episcopal da diocese da Guarda João Portugal, a quem Bandarra enviou um exemplar das suas Trovas com uma dedicatória elogiosa em versos. Se aceitarmos a dedicatória como autêntica, e creio não haver motivos para lhe pôr em dúvida a autenticidade, devemos concluir que o profeta, uns quinze anos depois da solene abjuração das suas trovas, no foro íntimo ainda acreditava nelas, e que o bispo da Guarda, homem brioso e até disposto a provocar as autoridades, se dignou aceitá-las». In José Van Den Besselaar, O Sebastianismo, História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CVCamões/JDACT

O Sebastianismo. José Van Den Besselaar. «… cujo nome em Latim se compõe de cinco sílabas: Se-bas-ti-a-nus. Mas Vieira, que em dada altura defendia a tese de ser João IV»

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«(…) António Vieira gaba-se diversas vezes de possuir um livro joaquimista a que dava o nome de Rusticano e que foi publicado em Veneza no ano de 1516, mas também este livro não passa de uma compilação de profecias tardias e, apesar de tantas vezes referido por Vieira, pouco lhe influenciou o pensamento. Há três profecias da escola joaquimista que se encontram em muitos cartapácios portugueses e foram frequentemente comentados pelos tratadistas. A primeira é a frase: cujus nomen quinque apicibus scriptum est, isto é: cujo nome se escreve com cinco ápices. Foi tirada de uma profecia atribuída à Sibila Eritreia, mas, na realidade, data dos meados do século XIII, e, no seu contexto original, o passo aplicava-se à pessoa do imperador Isaac Angelos de Bizâncio (m. 1204). Os sebastianistas ortodoxos, interpretando (erradamente) a palavra ápice no sentido de sílaba, viam na profecia uma clara alusão ao nome de Sebastião I, cujo nome em Latim se compõe de cinco sílabas: Se-bas-ti-a-nus. Mas Vieira, que em dada altura defendia a tese de ser João IV o Encoberto, explicava o termo ápice como pontinho que se põe sobre o i e via a profecia cumprida na grafia ioannes iiii.
A segunda profecia é o opúsculo apócrifo Vaticínios sobre os Papas, uma parte do qual data da primeira década do século XIV, e outra de cerca de 1355. Apesar de muito heterogéneas, as duas partes aparecem unidas desde o fim do século XIV. Fragmentos destas profecias entraram no Jardim Ameno, e o texto integral, com a tradução portuguesa, no Catálogo das Profecias. E, finalmente, é muitas vezes citada uma frase tirada do chamado Oráculo Angélico, composto no fim do século XIII. Este oráculo teria sido oferecido por um anjo a São Cirilo, um dos primeiros padres-gerais o Carmo, que enviou o texto obscuro ao abade Joaquim, com o pedido de o esclarecer com algumas glosas. Em diversos cartapácios a frase em questão apresenta a forma seguinte: No tempo de 1554 nascerá o Sol, e estará eclipsado e escondido por algum tempo, e será lastimado com o aguilhão de desprezo numa pequena cova de três ou quatro repartimentos, cercado de grandes grades. Guardá-lo-ão escorpiões, e depois senhoreará o Mundo.
O texto é um arranjo feito de alguns grupos de palavras que se acham espalhadas pelos capítulos I e II do Oráculo Angélico e se referem à luta por Nápoles entre a Casa de Anjou e a de Hohenstaufen. O arranjo mostra como os sebastianistas pouco se incomodavam com a origem e o contexto das suas profecias: perfilhavam-nas e modificavam-nas (por exemplo: no tempo de 54 (1254) mudaram em: no tempo de 1554, apropriando-as à sua causa. Mas temos razões para acreditar que eles não foram os primeiros violentadores de textos proféticos. Quem estiver a par deste género literário deve saber que essas deturpações já tinham sido praticadas em outros países da Europa, muito tempo antes de nascer o sebastianismo.

As trovas do Bandarra
A vida do Bandarra
Quase tudo o que se sabe seguramente da vida de Gonçalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial, publicado por Teófilo Braga na segunda metade do século passado. Deve ter nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso, onde viveu toda a sua vida, exercendo o ofício de sapateiro. Antes da publicação do seu processo, julgava-se que Bandarra foi sempre pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declaração ao Tribunal lemos que fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a verdade e o que cumpria à sua consciência, que não dizer outra cousa. Também se julgava que o sapateiro não sabia ler nem escrever, mas que costumava ditar as suas profecias ao padre Gabriel João, o qual seria seu amanuense, tal como o fora Baruch do profeta Jeremias. Hoje sabe-se que ele não era analfabeto.
Mantinha correspondência com várias pessoas do Reino, entre as quais se contavam figuras de destaque, tal como o doutor Francisco Mendes, médico do cardeal-infante Afonso. Lia e relia a Brívia em linguagem (a Bíblia em vernáculo) sem dúvida um texto escrito à mão, que tomara emprestado a um certo João Gomes Gião e guardara uns oito anos em casa». In José Van Den Besselaar, O Sebastianismo, História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CVCamões/JDACT

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina Cunha. «Normalmente, a filiação da Ordem portuguesa na castelhana tem sido identificada num único sentido: a confirmação dos mestres eleitos no capítulo de Avis»

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A dependência de Avis
«(…) Apesar de permanecerem obscuros alguns pormenores relacionados com a visita de 1346 e, sobretudo, de desconhecermos o desfecho destas situações conflituosas (certamente João Rodrigues Pimentel terá ganho porque continuou à frente da Ordem, não havendo mais sinais de contestação durante o seu mestrado), o certo é que os dados recolhidos, associados a outros anteriormente conhecidos, são deveras importantes para um melhor conhecimento do tema que, basicamente, hoje nos interessa: a dependência de Avis relativamente a Calatrava, tanto do ponto de vista religioso, como na perspectiva política.
Começámos por afirmar que Avis se regia pela Regra dada por Cister a Calatrava e que esta Ordem devia verificar o cumprimento do estipulado. Houve, pois, uma dependência religiosa desde o início e prova disso é o facto de as visitas a que acima fizemos referência terem sido executadas por um cavaleiro acompanhado de um monge cisterciense. Porém, em nenhuma das ocasiões se esclarece os motivos da escolha de um determinado abade. Em 1346, por exemplo, porque é que é o abade de Almaziva, da Diocese de Coimbra, que acompanha Pero Esteves? Até onde ia a intervenção dos monges cistercienses? As três actas que chegaram até nós não permitem vislumbrar um papel muito activo dos religiosos (para além da excomunhão lançada sobre João Rodrigues Gouveia). Tão-pouco os restantes documentos conservados até hoje se referem a qualquer intervenção de um monge cisterciense estranho a Avis na vida da milícia.
Normalmente, a filiação da Ordem portuguesa na castelhana tem sido identificada num único sentido: a confirmação dos mestres eleitos no capítulo de Avis pelo mestre de Calatrava ou por um seu representante. Mas os documentos de 1346 mostram-nos também o sentido inverso: cavaleiros portugueses estão presentes no capítulo de Calatrava, primeiro a pedir uma visita e depois a protestar dos agravos que haviam recebido aquando dessa mesma visita. Ou seja, a dependência não era só vista do lado castelhano, mas também o era do lado de Avis, porque alguns membros desta solicitaram directamente ao mestre de Calatrava resolução de problemas internos da casa portuguesa. Seja como for, a dependência de Avis não pode ser posta em causa. Quando, no século XIV, se dá o Grande Cisma da Igreja, Avis alcança a independência religiosa. Se a vontade de a alcançar já existiria, o motivo, bem simples, foi então dado: Calatrava tinha aderido ao partido cismático. Daí que os freires portugueses não tivessem aceite a visita que seria para confirmar Fernão Rodrigues Sequeira, em 1387. A situação política nacional terá também influído no desenrolar dos acontecimentos, mas o grave problema do Cisma deu ao pontífice o motivo necessário para eximir Avis das visitas de Calatrava. A liberdade conquistada parecia, contudo, provisória: em 1436, no Concílio de Basileia, volta-se a entregar o direito de visita à ordem castelhana, que não mais deixa de tentar exercê-lo, embora sem sucesso. O desmembramento das duas Ordens era doravante um facto.
No tocante ao aspecto político, gostaríamos de salientar a intervenção régia no processo de 1346. Desde o início que a monarquia terá procurado afirmar a separação nítida das duas Ordens. De outro modo, não faria sentido que Afonso Henriques autorizasse a presença em Portugal de uma milícia que poderia constituir uma ameaça contra ele (a não ser que as doações régias tenham o significado que Lomax atribuiu às doações feitas pelo rei de Leão à Ordem de Calatrava, que visavam comprar a sua neutralidade). Portanto, quando Afonso Henriques faz doações ou se refere aos freires de Évora, não significa que não considerasse a Ordem filiada, mas sim que ele a sabia politicamente autónoma relativamente aos castelhanos. Daí também que os reis que lhe sucederam, nomeadamente Dinis I, tenham procurado marcar bem a dependência da Ordem à monarquia portuguesa. A eleição do mestre Garcia Peres Casal, imposta pelo monarca em 1314, é bem prova disso. Que se saiba, não houve então visita, nem seria considerada necessária porque o monarca resolvera o problema da sua ordem. De facto, ao longo da Idade Média, o rei serviu de juiz nas contendas da Ordem com os povoadores e com os concelhos do reino, mas também serviu de recurso a alguns cavaleiros que, por este motivo ou aquele, para ele apelaram em busca de resolução de conflitos internos da Ordem. O documento que nos fala da eleição de 1314 diz-nos isso claramente: é o rei que acalma a grande discórdia que havia entre os freires. O mesmo se terá passado em 1346 com Afonso IV, embora não saibamos até onde terá chegado a intervenção régia.
O comendador calatravenho, Pero Esteves, em visita a Avis, não só aceita a intervenção do rei no litígio que opunha o comendador Fernão Rodrigues ao mestre João Rodrigues Pimentel, aconselhando aquele a dirigir-se ao monarca para reaver os seus direitos na Comenda, como lembra, em plena reunião capitular, que Avis devia fidelidade ao rei português. Mas, conforme então proclamou João Rodrigues Pimentel, não era preciso relembrar tal, pois que, como mestre, o ,seu coraçom [devia] seer obediente e mandado. a seu senhor el rey (..) como o el, dom Per'Estevez muy bem sabia». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina Cunha. «… a sentença dada por fr. João fora ‘contra o direito e contra a Ordem’, pelo que manda ao prior do convento calatravenho anular a excomunhão lançada. É esta a última referência que temos de João Rodrigues Gouveia»

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A visita de 1346
«(…) Voltemos, então, à visita de 1346. Antes de mais, porém, importa apresentar a situação que nessa altura se vivia em Avis, tal como nos aparece plasmada nos documentos. Após a sua eleição, ocorrida em 1342 conforme acima referimos, João Rodrigues Pimentel terá nomeado, de acordo com os Estatutos da Ordem, um novo comendador-mor: João Rodrigues Gouveia. Este cavaleiro, juntamente com o celeireiro, o sacristão e o prior do convento, reunido o capítulo para esse efeito, deram em 1343, uma procuração de plenos poderes ao mestre para actuar em nome da Ordem. Entretanto, algo se passou que desagradou de sobremaneira a João Rodrigues Gouveia, que nos surge no capítulo de Calatrava, antes de Maio de 1346, já como antigo comendador-mor, juntamente com o anterior celeireiro e alguuns outros vossos freires a solicitar uma visita do mestre João Nunes ao convento português, solicitação que também terá sido feita pelo próprio João Rodrigues Pimentel, que, por seu turno, também se queixara de alguns cavaleiros. De facto, deveria haver, no seio da Ordem portuguesa, alguma contestação a João Rodrigues Pimentel.
Sabemos que este tinha retirado os bens a Fernão Rodrigues, comendador de Cabeço de Vide (teria sido nomeado outro?), que vai considerar como fogitivo e vagabundo. Por um documento um pouco posterior, sabemos que também João Rodrigues Gouveia (anterior comendador-mor) se diz perseguido pelo mestre de Avis. A visita de Calatrava era, portanto, necessária e urgente. E porque o mestre castelhano não podia então vir pessoalmente poer sosego em Avis, envia o comendador Pero Esteves em seu lugar. Acompanhemos, pois, essa visita.
Em fins de Maio de 1346, ou já mesmo durante o mês de Junho, dirigindo-se a Portugal, Pero Esteves escreve a Fernão Rodrigues, comendador de Cabeço de Vide, convocando-o para um capítulo em Avis. O encontro, segundo testemunho do próprio visitador, teve efectivamente lugar, mas à margem do capítulo de Avis, já que Fernão Rodrigues tinha tamanho medo do mestre Rodrigues Pimentel que não ousava comparecer perante ele. Além disso, o (ex?)-comendador dizia também, em sua defesa, que tinha uma carta régia que o reconhecia com direito às propriedades de Vide que o mestre lhe filhara. Tendo em conta os argumentos apresentados, Pero Esteves dispensou Fernão Rodrigues da presença no capítulo que se realizaria em Avis.
A 27 de Agosto, João Rodrigues Pimentel, em reunião capitular, anuncia a todos os presentes que o prior da Ordem de Avis, frei Gil, tinha lançado pena de excomunhão sobre Fernão Rodrigues, porque andava desobediente demaiis e porque fora citado três vezes para comparecer no convento e não o fizera. Além disto, o mestre pede ao cabido que pronuncie sobre Fernão Rodrigues a pena que a Ordem manda dar aos vagabundos revees. É então que o visitador intervém em defesa do comendador de Cabeço de Vide, dando notícia da entrevista que com ele tivera e da carta régia que lhe havia sido mostrada (e que acima referimos). Assim, como visitador, em nome de João Nunes, não tomava qualquer atitude contra Fernão Rodrigues, porque não queria ir contra uma determinação do rei de Portugal, a quem a Ordem devia obediência. Mas Pero Esteves sublinha igualmente que não queria interferir na gestão do mestre de Avis, que havia retirado a comenda da responsabilidade do dito freire. Resumindo, o capítulo acaba sem que esta questão ficasse resolvida.
Como também não terá tido fim a oposição do anterior comendador-mor, João Rodrigues Gouveia, ao mestre e que o levara a pedir a intervenção de João Nunes. Não sabemos exactamente o que opunha estes dois cavaleiros. João R. Gouveia terá recebido a convocatória para estar presente no convento de Avis aquando da visita do castelhano, mas Pero Esteves (visitador) aconselhou-o a não comparecer. Só após alguma insistência deste, o antigo comendador-mor terá desistido de ir pessoalmente a Avis enfrentar os companhons que y el maestre de Avis tinha juntados" e "mostrar el mal e agravios que dezia que a el e a la dicha orden feziera. Não vislumbramos a razão pela qual a atitude do visitador foi diferente relativamente aos dois contestatários de João Rodrigues Pimentel. Mais tarde, respondendo a uma interpelação do mestre de Calatrava, Pero Esteves irá dizer que quis evitar escandalo no capítulo de Avis. O certo é que esta ausência redundou numa sentença de excomunhão que o próprio monge cisterciense que acompanhava o visitador (frei João, abade. de S. Paulo de Almaziva) impetrou sobre o faltoso. Porque não chegou até nós esta carta (ou a parte da acta do capítulo que versou sobre esta matéria), desconhecemos o motivo de tal castigo, mas é possível que Fernão Rodrigues Pimentel a tenha solicitado em plena reunião capitular (num momento posterior ao que se refere ao problema do comendador de Vide, e que não ficou plasmado no mesmo pergaminho). A João Rodrigues Gouveia só restava novo recurso a Calatrava.
Reunido o capítulo da milícia castelhana no castelo de Marcos, a 14 de Setembro, o mestre João Nunes considera que a sentença dada por fr. João fora contra o direito e contra a Ordem, pelo que manda ao prior do convento calatravenho anular a excomunhão lançada. É esta a última referência que temos de João Rodrigues Gouveia». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT