terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Cemitério de Pianos. José Luís Peixoto. «Sentou-se, levantou a tampa que cobria o teclado e percorreu-o com o olhar. Quase comovido, disse: o teu pai iria ficar tão feliz se aqui estivesse»

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«(…) O telefone continua a tocar. Os passos da minha mulher são rápidos na alcatifa porque ninguém costuma telefonar durante o dia. Dentro de si, teme que seja uma má notícia, teme que seja uma notícia que a deite por terra, que a destrua, que a condene outra vez: a morte. Aperta a menina de encontro ao peito e avança ansiosa pela alcatifa: o mais depressa que é capaz. E o telefone pára de tocar. Os passos da minha mulher perdem o sentido, abrandam e param. Na cozinha, a música de piano continua a nascer da telefonia e é empurrada pelo vento que entra através da janela aberta. Não queria dizer nada ao meu tio, porque queria ver o resultado do seu entusiasmo. Ele rodeava o piano com palavras e passos que, subitamente, mudavam de direcção. À distância, com os braços cruzados sobre o peito, eu olhava-o e não acreditava em nada do que dizia. Na serradura que cobria o chão, havia o desenho de uma forma irregular que era o carreiro por onde o meu tio seguia. Num impulso, quebrou essa corrente de passos desenhados e foi buscar um banquinho: coberto de restos de tinta e de pregos tortos: que colocou à frente do piano. Sentou-se, levantou a tampa que cobria o teclado e percorreu-o com o olhar. Quase comovido, disse: o teu pai iria ficar tão feliz se aqui estivesse.
Foi nesse momento que tudo encontrou um sentido dentro de mim. O meu pai. Como um dedo sobre uma tecla a despertar um mecanismo adormecido, compreendi. À entrada da oficina, à direita, havia uma porta fechada, tapada pelo tempo e por cadeiras a que faltava uma perna, por tampos de mesas e outros restos que se foram acumulando num monte desordenado. Nesse início de tarde, eu e o meu tio afastámos tudo e, como não sabíamos da chave, fui eu que arrombei a porta com dois pontapés na fechadura. A minha mãe evitava falar dessa divisão fechada da oficina. Se o fazia, dizia sempre que não havia lá nada que me interessasse. Quando essa explicação deixou de ser suficiente, falou-me de sustos. Disse: há sustos lá dentro.
Com dez anos, essa explicação chegava-me. Depois, passaram verões e invernos. Deixei de fazer perguntas. Havia uma porta fechada à entrada da oficina, lentamente tapada por tábuas, por trastes, e eu não pensava nisso. Pensava noutras coisas. Nesse início de tarde, ficámos parados durante um momento perante essa porta subitamente aberta. Lá dentro, a escuridão absoluta cobria todas as formas. Era como se tivéssemos aberto uma porta sobre a noite. Diante de nós, na escuridão podiam estar campos cobertos pela noite, ou um rio coberto pela noite, ou uma cidade inteira: adormecida ou morta: coberta pela noite. O meu tio entrou primeiro. Deixei de vê-lo entre sombras de sombras: um vulto entre vultos. Ele sabia os caminhos, e foram precisos poucos passos, poucos sons misteriosos dentro da escuridão, até que, com a manga da camisola, começasse a limpar o vidro da pequena janela coberta de pó. Através dos seus movimentos, entraram raios de luz. Devagar, a claridade encheu todo o vidro.
A luz deslizou pelas superfícies de pó. Pouco se via da sujidade das paredes e o peso do tecto baixo era mais real porque havia pianos de todos os géneros que se erguiam, sólidos e empilhados, quase a tocarem o tecto. Encostados às paredes, havia pianos verticais uns sobre os outros: na ordem com que o meu pai, ou o seu pai antes dele, os tinha equilibrado. Ao centro, havia muros de pianos sobrepostos. A luz atravessava os espaços vazios entre eles e, mesmo da porta, podia distinguir-se o labirinto de corredores que camuflavam. E sobre um piano de cauda estava outro piano de cauda, mais pequeno e sem pés; sobre esse estava um piano vertical, deitado; sobre esse estava um monte de teclas. Ao lado, separados por uma fresta que a luz atravessava, dois pianos verticais, com a mesma altura, encostados um ao outro, suportavam um piano vertical mais robusto que, no seu topo, segurava um pequeno piano de armário. Havia pianos encaixados de todas as formas possíveis. Nas folgas onde não se encaixavam completamente, a claridade atravessava teias de aranha abandonadas que seguravam gotas de água, como pontos de brilho. O ar fresco entrava nos pulmões e trazia o toque húmido do pó pastoso que era a única cor: o cheiro de um tempo que todos quiseram esquecer, mas que existia ainda. O silêncio desprendia-se dessa cor clara e antiga. A luz atravessava o silêncio. No chão, havia tampos esfolados de pianos, ao alto, encostados a outros pianos. Em certos cantos, havia varões de metal, teclas, pedais e pernas de piano presas umas às outras com arames. Através do espaço entre dois pianos, a partir da pequena janela finalmente luminosa, o meu tio olhava-me com um sorriso. Quando fixei directamente o seu rosto, sorriu mais, saltou para o chão com um estrondo das botas e desapareceu entre os pianos. Entrei, escolhendo o lugar onde pousava cada pé, como se temesse alguma coisa que desconhecia». In José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT