sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder Patriarcal. Maria Graciete Besse. «Deparamos assim com figuras femininas marcadas por condicionalismos de vária ordem, maltratadas, enclausuradas, casadas à força, enganadas, exploradas…»

Cortesia de wikipedia

«Na opinião de Maria Alzira Seixo há pelo menos quatro razões para reler Novas Cartas Portuguesas. Uma delas, talvez a mais importante, é o confronto dos tempos que permite verificar como a situação para a qual o livro apelava (a situação social da mulher) não foi passível de qualquer alteração significativa. Com efeito, apesar de ter havido alguns progressos na condição feminina em Portugal depois de 1974, as desigualdades mantêm-se e o poder patriarcal parece não ter sofrido grandes mudanças. A publicação em Abril de 1972, em plena primavera marcelista, de Novas Cartas Portuguesas, livro assinado por três escritoras já conhecidas no espaço literário português, funcionou como um acto político de alto valor simbólico que provocou uma reacção feroz por parte da censura fascista: acusadas de pornografia e ultraje à moral pública, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa viram o seu livro retirado do mercado e descobriram-se a braços com um processo judicial a que só a pressão dos movimentos feministas internacionais e sobretudo a Revolução dos Cravos permitiram pôr termo. A mais de 30 anos de distância, e mesmo se hoje os códigos morais e as mentalidades portuguesas já não se escandalizam com o livro das três Marias, parece-nos interessante interrogar o discurso de insurreição desta obra que, a nosso ver, ainda não perdeu de todo a actualidade, mesmo se a sua reedição em 1998 passou quase despercebida. Ao mergulhar no livro, o que o leitor descobre antes de mais é uma escrita ousada, por vezes agressiva, despudorada, formando um vasto panorama sobre o estatuto das mulheres no imenso cortejo do seu infortúnio histórico. Deparamos assim com figuras femininas marcadas por condicionalismos de vária ordem, maltratadas, enclausuradas, casadas à força, enganadas, exploradas e, apesar de tudo, extremamente pacientes. Mariana Alcoforado, a célebre religiosa de Beja, que serve de ponto de partida ao discurso entrecruzado e indissociável das três escritoras, funciona como o símbolo de todas as mulheres, como o arquétipo da alienação e da clausura feminina no seio da sociedade patriarcal, pois: que mulher não é freira, oferecida, abnegada, sem vida sua, afastada do mundo? Qual a mudança, na vida das mulheres, ao longo dos séculos? No tempo de tia Mariana as mulheres bordavam ou teciam ou fiavam ou cozinhavam, sujeitavam-se aos direitos de seus maridos, engravidavam, tinham abortos ou faziam-nos (...) O que mudou na vida das mulheres? Já não tecem, já não fiam, talvez porque se desenvolveram a indústria e o comércio; as mulheres bordam, cozinham, sujeitam-se aos direitos de seus maridos, engravidam, têm abortos ou fazem-nos, têm filhos, nados-mortos, nados-vivos, tratam dos filhos, morrem de parto, às vezes, em suas casas, onde apenas mudou o feitio dos móveis, das cadeiras e dos cortinados. Neste círculo infernal, o destino das mulheres repete-se de geração em geração, legitimado pela cultura e pela tradição, uma vez que desde o princípio dos tempos: tiveram os homens de se julgar semideuses caídos de sua graça por obra da mulher; e logo depois tiveram que se inventar redimidos através do ventre de nova mãe, essa santa, essa capaz de conhecer Deus no seu ventre e de no seu ventre encarnar o deus salvador, depois chamado o filho do homem, que ironia rebuscada, na sua vida e nos seus actos exemplares. O estatuto da mulher no pensamento patriarcal foi sempre definido pela marginalização, pela estigmatização e pela domesticação. Dependentes e submissas, vítimas do amor ou da paixão, as mulheres foram durante séculos o verdadeiro Outro do homem, o continente negro que Freud assumia como inacessível. Num contexto cultural marcadamente falogocêntrico, como diria Derrida, a escrita constitui para elas uma forma de afirmação identitária. Durante muito tempo, a epistolografia, género considerado menor, conotado com o feminino, revelou-se um fértil espaço de interrogação e de reflexão. Também o convento funcionou paradoxalmente como espaço de libertação, constituindo uma forma de escapar ao casamento imposto pela família. As cinco cartas atribuídas a Mariana Alcoforado, publicadas em Paris no século XVII, com o título Lettres de la Religieuse Portugaise, contavam a paixão infeliz da freira abandonada por um oficial francês, o conde de Chamilly, e conheceram a partir de 1669 um êxito enorme que inspirou muitas continuações, respostas e imitações. Depois de várias polémicas, é hoje aceite como seguro que o autor destas Cartas foi Guilleragues, bom conhecedor da alma feminina e da história de Mariana Alcoforado que viveu, de facto, no convento de Beja. Ao traduzir as cartas da freira para alemão, em 1907, Rilke salientou a sua originalidade, considerando-as como as mais belas cartas de amor da literatura ocidental. Em Novas Cartas Portuguesas as três Marias mobilizam justamente este texto, sem nunca evocarem Guilleragues, e inventam várias gerações de Marianas vítimas da opressão patriarcal, da violência social, da injustiça e da discriminação, como a Mariana filósofa que vê desmoronar-se todos os seus esforços literários, a mulher solteira e desprezada, que trabalha para ganhar um salário de miséria, ou ainda a mulher transformada em objecto de consumo, vítima do seu destino biológico. Através de uma rede intertextual, híbrida e fragmentada, as três autoras revelam a encruzilhada onde se encontra a mulher, em processo de tomada de consciência, ou seja, de desclausura. Desta forma, o livro afirma-se como um palimpsesto, na medida em que a sua superfície esconde níveis de significação mais profundos, equacionando modernidade e tradição. Com efeito, ao estabelecer relações com as famosas Cartas de Mariana Alcoforado, o texto moderno propõe uma palavra circular onde se conjugam dois tempos (passado-presente), dois espaços (interior-exterior) e dois universos (real-imaginário), solicitando frequentemente a dinamização de discursos oriundos da oralidade, da tradição lírica, de obras anteriores das autoras, de passagens de um texto de Albertine Sarrazin ou ainda, entre muitas outras possibilidades, a transcrição de um artigo do Código Penal português». In Maria Graciete Besse, As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder Patriarcal, Wikipedia, revista Latitudes nº 26, 2006.

Cortesia de rLatitudes/JDACT