sábado, 13 de janeiro de 2018

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «… a doce ondulação, que embalava as faluas dos pescadores. Konrad teve vontade de se deitar numa delas. Que sonhos lhe traria aquele doce embalar?»

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«(…) Marcharam ao longo do rio, que, ao contrário do Douro, não parecia ter pressa em se juntar às águas do oceano. Corria tão calmo e espraiado, originando um leito tão extenso, que se diria espreguiçar-se ao sol. Junto à margem existiam salinas e Konrad admirava as plantações espalhadas pelas colinas à sua esquerda: searas, vinhas, oliveiras, para não falar dos pomares de laranjas, limões, figos e romãs. Também se viam pastagens, mas poucos animais. As aldeias, os campos e as salinas estavam abandonados, a maior parte dos aldeões procurara abrigo dentro das muralhas de Lusbuna. Konrad ouvia expressões de entusiasmo à sua volta: que região tão fértil! E está tudo à mão de semear. O cerco seria uma brincadeira. Konrad começou a inquietar-se. O que estava a acontecer aos homens que, momentos antes, mal podiam esperar a partida? Do cimo de um cerro, avistaram o lado ocidental de Lusbuna, com o seu arrabalde incrustado nas rochas que serviam de alicerce às muralhas. As casas deste bairro estavam construídas de maneira a formar um conjunto hermético, coladas umas às outras, sem aberturas para o lado exterior. As muralhas da cidade desciam em socalcos, desde o ponto mais alto, a norte, onde dominava a torre quadrangular da alcáçova, até à margem do Tejo. Torres mais pequenas, todas quadradas, reforçavam as muralhas em vários pontos. No topo noroeste dos muros da alcáçova, um pano de muralha prolongava-se pela encosta abrupta, terminando numa torre, que delimitava e protegia o arrabalde.
Nas ameias, entre os merlões quadrados, adivinhavam-se as sentinelas mouras, mas os cruzados encontravam-se fora do alcance dos seus tiros de besta, pois uma vasta e verde pradaria separava-os da cidade. Essa pradaria era atravessada por um curso de água, aos pés do arrabalde, que a norte se dividia em duas ribeiras, rodeando o sopé de uma colina. Para sul, alargava-se num esteiro, juntando-se ao Tejo. A foz do esteiro parecia ser um porto de abrigo e nos seus areais havia um estaleiro, mas ninguém trabalhava nas embarcações, que jaziam abandonadas. Era difícil de dizer quanta gente ainda se encontrava no arrabalde, com as casas assim construídas, em jeito de muralha. Ainda junto à foz do esteiro, no extremo sudoeste da cidade, avistava-se uma grande torre albarrã, adiantada algumas jardas das muralhas e a estas ligadas por um passadiço. O pano de muralha junto ao porto fundeava em terreno baixo, chegava quase ao rio, e dava a ver o casario de Lusbuna, que se distribuía pela colina. Konrad e os outros quedaram-se boquiabertos. Esta cidade era bem diferente das que eles conheciam, em que a maioria das casas era feita de madeira e onde, durante quase todo o ano, reinava a humidade, o frio e a escuridão. Lusbuna parecia ser feita de brancura e de luz. As paredes caiadas reflectiam a luminosidade do sol e a grande mesquita, a última construção que se avistava, antes de a muralha engolir a cidade baixa, ostentava sete cúpulas cobertas de telhas vidradas a verde, a cor do Profeta Maomé. Também o minarete adjacente, forrado a azulejos da mesma cor, cintilava ao sol.
Toda aquela luminosidade atraía Konrad de uma maneira irresistível. A cidade, à qual ele tanto desejava virar as costas, parecia enfeitiçá-lo, querer engoli-lo... Konrad deixou de ouvir as conversas excitadas dos seus companheiros e foi descendo a colina, como que em transe, até chegar à planície verdejante. Os seus olhos fixaram-se numa grande Porta, rasgada numa das torres quadradas que guarneciam as muralhas, nas imediações da mesquita. A esquerda desta Porta, começava o arrabalde e, à direita, estendia-se, até à torre de vigia na ponta sudoeste, mais um pequeno bairro, na zona ribeirinha. De repente, Konrad teve a impressão de que as grossas portadas de madeira chapeadas em ferro se abriam! Devem ser brincadeiras deste sol diabólico, pensou, enquanto piscava os olhos. Sentiu necessidade de refrescar as têmporas e caminhou até à margem do esteiro, aproximando-se perigosamente do arrabalde, no qual ninguém sabia dizer se havia sentinelas por sobre os terraços das casas que formavam uma verdadeira muralha. Alheio ao perigo, Konrad humedeceu a testa e os cabelos. E logo uma brisa o refrescou. Ainda sob o efeito daquele estranho feitiço, ele observou as embarcações abandonadas, que flutuavam sobre as ondas suaves. Era altura de maré cheia e o Tejo, forçado pelo oceano, despejava água no esteiro, alargando-o cada vez mais e originando a doce ondulação, que embalava as faluas dos pescadores. Konrad teve vontade de se deitar numa delas. Que sonhos lhe traria aquele doce embalar?
O esteiro galgava a areia das suas margens a olhos vistos. Numa questão de momentos, Konrad encontrava-se enfiado na água até aos joelhos. Mas permanecia tranquilo. Tudo à sua volta se quedava estranhamente calmo e sereno... Tornou a observar a grande Porta, encimada por arcadas duplas que assentavam em colunas de mármore... Konrad!» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT