quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Os Loucos da Rua Mazur. João Pinto Coelho. «Claro! Não vinha só, ele distinguiu outros passos, passos de homem. Perdóneme, desculpou-se Fidelia, afogueada»

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«(…) Passara um mês e alguém o procurara no centro de acolhimento. Ao vê-lo, o homem apressara o passo idoso, chamara-o pelo nome, prometera tirá-lo dali, levá-lo para França e ensinar-lhe a língua pelas palavras dos mestres. Só então celebraram a dor do reencontro com um abraço que durou doze anos. Quando o homem morreu, ele partiu de Marselha, levando consigo a mala azul e dinheiro para comprar uma livraria em Paris. Durante anos, ignorara a erosão do tempo, mas agora os dias repetiam-se cada vez mais iguais. Ultimamente os livros já não eram terminados e as visitas de Fidelia à mãe tornavam-se mais frequentes e prolongadas. O livreiro valia-se então das trivialidades que restavam, o que é natural quando a vida e o homem se vão despedindo por mútuo consentimento. Jerôme, o do café, continuava a aparecer às seis da tarde com a garrafa de pastis e dois copos na algibeira do avental. Bebiam durante os vinte minutos cumpridos à risca, quantas vezes sem palavras para trocar, até Jerôme sair para fumar no passeio e fechar o café.
Ele, que pensava muitas vezes nestas coisas, conformou-se por estar ali a um domingo, sentado à escrivaninha. Deu por si a tatear o rosto emoldurado da amante. Lembrou-se do dia em que a conhecera, mas já não do que sentira, e conformou-se outra vez. Endireitou o retrato de Fidelia como se o pudesse ver. Aquele era o único dia da semana em que a livraria encerrava ao público, mas nem isso o mantivera em casa. Na verdade, nos últimos meses, não se lembrava de ter passado um só domingo sem ser ali, exactamente ali, no recesso mais escuro da loja. Fidelia chegava cada vez mais tarde nas noites de sábado e passava o dia na cama, agoniada. Talvez fosse prudente resguardar a mãe de tais noitadas, sugerira ele um dia, mas arrependera-se de a ter provocado e prometera continuar cego. Derrubou o retrato de Fidelia como se não o pudesse ver.
Então decidiu ouvir música. Com gestos pouco firmes, alcançou o rádio que servia de pisa-papéis e ligou-o. O som era fraco, de um acordeão, mas distinguiu perfeitamente o dedilhar de um contrabaixo no meio da estática. A amargura da música era quase festiva, e ele deixou-se contagiar e cantou baixinho, parecia um rumorejo, como se respondesse aos instrumentos com coisas que não deveriam ser escutadas. A meio da terceira canção, soaram duas pancadas na vidraça. Não poderia ser Fidelia, já que, mesmo ressuscitada, nunca apareceria na loia a um domingo. Por isso ignorou a visita e retomou o diálogo. Mais pancadas, impacientes. Ergueu instintivamente o rosto e continuou impassível. A seguir, nada, apenas a música a extinguir-se para dar voz ao locutor. Porém, uma hora depois, ouviu o barulho apressado de duas voltas de chave e soube que o fim da manhã estava condenado. As desculpas castelhanas de Fidelia irromperam peia livraria, mais o som de uma carteira atirada com forca para trás do balcão.
Claro! Não vinha só, ele distinguiu outros passos, passos de homem. Perdóneme, desculpou-se Fidelia, afogueada. Vim a pé. Espere um pouco, ele deve estar no fundo da loja. O visitante olhava para todo o lado, parecia nem dar por ela, enquanto o livreiro esperava que a amante se aproximasse. Despacha-te, sussurrou a rapariga. Ele telefonou-te, tinhas acabado de sair. Quer falar contigo, mexe-te, diz que é importante. O cego levantou-se devagar sem desligar o rádio. Caminhando à sua frente, Fidelia começava finalmente a despertar: tirou-me da cama, cabrón, já sabia que não lhe abrias a porta. Quando chegaram ao vestíbulo, Fidelia forçou um sorriso. O meu marido. O livreiro, que não era marido dela, estendeu a mão, indiferente à localização do outro. O visitante deu três passos em frente e apertou-lha quase de raspão. Nenhum disse nada». In João Pinto Coelho, Os Loucos da Rua Mazur, prémio Leya, Leya SA, 2017, ISBN 978-989-660-457-8.

Cortesia de Leya/JDACT