segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Os Loucos da Rua Mazur. João Pinto Coelho. «Houvera ainda Apolline, Doriane e Madalena. Apolinne, a primeira, que se punha a arder quando o romance aquecia…»

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«A montra negra da Livraria Thibault era a moldura mais respeitada da Rue de Nevers, um beco desconsolado que se escondia entre as costas de dois quarteirões do Quartier de la Monnaie e que, séculos antes, servira de escoadouro às imundices das irmãs da Penitência de Jesus Cristo. A loja situava-se sob o arco que abria para o Quai de Conti e, para entrar era necessário bater na vitrina. Isto se ele desse pelo sinal, o que não era garantido. Naquele domingo, o livreiro cego dirigiu-se ao recesso mais escuro da livraria e sentou-se à escrivaninha. O tampo estava vago, apenas papeis dispersos, uma telefonia a pilhas e um rosto num passe-partout, o rosto de Fidelia. Estavam juntos havia quatro anos e ele lembrava-se da apoteose dos primeiros tempos: descontando as raras e breves ocasiões em que a rapariga visitava a mãe, nunca acordara sozinho. Como qualquer velho, invejava a imaturidade e embriagava-se com a juventude da amante. E depois Fidelia lia-lhe a todas as horas do dia. Imprevisíveis, as palavras da jovem surgiam-lhe de lugares distintos, adocicadas pelo sotaque platense, dando voz à multidão de livros que o rodeavam desde sempre como um coro de mudos. Na verdade, sempre escolhera as mulheres pelos olhos que não tinha.
Só deixava que o aceitassem como amante se lhe prometessem maratonas de leitura. Nunca se despedira de nenhum com um livro a meio e só por uma vez deixara que o convencessem na hora de escolher o que ler. Fora Azurine, uma argelina de meia-idade, cuja paixão obcecada por Zola lhe adiara Lolita pela semana que levara a terminar Germinal, um ultraje!
Houvera ainda Apolline, Doriane e Madalena. Apolinne, a primeira, que se punha a arder quando o romance aquecia e o fizera devolver os Henry Miller que tinha na livraria; Doriane, a actriz que invadia a imaginação do livreiro, arquejando como Desdémona às mãos de Otelo ou rindo-se da morte como a Bovary, outro ultraje, os grandes livros dispensam essas coisas, dissera-lhe ele tantas vezes; e Madalena, filha de um português e de... Apolline, que, trinta anos depois, aquecia o lugar que fora da mãe, embora com mais equilíbrio entre as páginas e os lençóis. É claro que a vida dele não fora só romances, também a abrira a contos lidos numa noite, literatura de cordel que esquecia sem desgosto. Nunca cuidara das razões daquelas mulheres, porque o procuravam, porque se deixavam ficar. Talvez preferissem não ser vistas ao acordar, talvez adorassem ouvir-se com a voz dos livros.
Gostava de França e morreria em Paris. Resumia a sua vida todos os dias, mas não incluía os anos de juventude nem a tragédia que o fizera fugir. Preferia lembrar o recomeço, a chegada a Génova, o sopro dos freios do comboio. Contara cada segundo de silêncio após a abertura das portas e fora o primeiro a apear-se. O impacto dos sapatos no empedrado soara-lhe como tiros no cais vazio. Era só mais um judeu a escapar das cinzas. Atrás de si, outros trezentos de olhos relutantes, uma tapeçaria de caras estendida à porta de cada vagão. Nesse momento ouvira a campainha e voltara a contar os segundos. Mas nem então os gritos irromperam, só o som dos que saltavam da carruagem, os passos renitentes, a roupa a raspar na roupa, as tosses dispersas a lembrar que a carga era humana. Sentira um encontrão e agarrara a mala azul com mais força. Lá dentro, papéis escritos que, dobrados, lhe caberiam na algibeira. Mas ele queria uma mala, com as mãos vazias pareceria um indigente, já bastava sê-lo. Não vira os companheiros curvados e cinzentos olhando em redor como se esperassem lobos. A chegada dos carabinieri tivera um efeito caótico, todos se espremeram uns contra os outros. Afinal era só para os levarem para a sala ao lado, uma espécie de refeitório inventado à pressa onde as cozinheiras pareciam enfermeiras. O ar devia vir todo das panelas, transpirado e temperado como sopa quente, e eles na fila a mastigar o cheiro com vergonha da bondade das mulheres». In João Pinto Coelho, Os Loucos da Rua Mazur, prémio Leya, Leya SA, 2017, ISBN 978-989-660-457-8.

Cortesia de Leya/JDACT