quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Obra de Eugénio de Andrade. Antologia Breve. Eugénio de Andrade. «De mim podia falar-te, mas não sei que dizer-te desta história de maneira que te pareça natural a minha voz»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Eugénio de Andrade é, a par de Pessanha, o poeta português mais próximo de uma poesia-música, numa linguagem maximamente cerrada sobre si, ou inesgotável a qualquer paráfrase...» In Óscar Lopes

«Trata-se de um dos maiores líricos da literatura portuguesa, que é também o grande poeta do amor no nosso século XX». In António José Saraiva

(…)
«Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

Tenho o nome duma flor
quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu sei
se sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.

Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.

Imagem dos gestos que tracei
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto».

A uma cerejeira em flor
«Acordar, ser na, manhã de abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração duma cereja.

Shelley sem anjos e sem pureza,
aqui estou à tua espera nesta praça,
onde não há pombos mansos mas tristeza
e uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
das casas não vale a pena porque estão
gastas pelo relógio e pelas luas
e pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te, mas não sei
que dizer-te desta história de maneira
que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
tecendo estes versos e a noite
que te há-de trazer e nos há-de deixar sós».
Poemas de Eugénio de Andrade, in ‘Antologia Breve

In Eugénio de Andrade, Antologia Breve, Obra de Eugénio de Andrade nº 25, Fundação Eugénio de Andrade.

Cortesia de FEAndrade/JDACT