sábado, 30 de dezembro de 2017

Marquesa de Alorna. Maria João Lopo de Carvalho. «Por um instante ficaram as duas caladas. Com efeito, pensou dona Leonor, o costume seria ouvir-se na noite o ladrar dos muitos cães que vadiavam por Lisboa»

Cortesia de wikipedia e jdact

Leonor. 1755-1770
«Feliciana, Feliciana!… Mãe! Senhora minha mãe! O grito estridente de Leonor rompeu o silêncio da noite, que logo voltou a cair denso e medonho, invadindo o quarto como um monstro tenebroso. Escondida debaixo dos pesados lençóis de linho, Leonor, apavorada, tornou a chamar, desta vez ainda mais alto. Feliciana, Feliciana!… Mãe! Senhora minha mãe! Foram instantes até que uns passos apressados fizessem ranger o soalho do corredor. Leonor recostou-se nas almofadas, de olhos fixos na porta, agarrando com força na boneca de madeira. A mãe vinha aí, conhecia-lhe o andar mas só quando a viu recortada no escuro suspirou de alívio. Leonor estranhou que a ama não tivesse ouvido a filha mais velha mas, como a pequena não parava de chamar, teve de se levantar e de sair dos seus aposentos em camisa. Entrou no quarto, afastou as cortinas do leito, pousou a palmatória de prata com a vela acesa na mesa-de-cabeceira e sentou-se na borda da cama. Trazia o cabelo arrumado numa touca bordada e um sorriso doce, que a criança sentiu pousar-lhe primeiro ao de leve na pele e depois no coração. Então, Leonorzita, são cinco da manhã, o que te inquieta, minha filha?
O silêncio, respondeu Leonor, erguendo-se de repente e agarrando-se à cintura da mãe, num abraço desamparado. O silêncio, filha? Mas querias tu que houvesse ruído no palácio, a esta hora? Leonor desprendeu-se dos braços da mãe, pulou descalça para o chão e correu a abrir as janelas de par em par. A noite estava límpida, de uma imensa serenidade, e uma brisa leve de nordeste entrou pelo quarto. O céu, minha mãe, as estrelas, de que meu pai me ensina os nomes, fugiram todas! Passou por aqui uma só… e tinha asas. Era uma estrela com asas e não deixou senão uma cauda, como se fosse o manto de Sua Alteza! Que disparate, filha! Dona Leonor fechou as janelas. Anda, anda deitar-te, Leonorzita, eu fico aqui contigo mas diz-me o que te assusta, meu anjo! O céu, senhora minha mãe, passou aqui por cima uma estrela com asas, que eu vi…
Dona Leonor voltou a deitá-la, cobriu-a com os lençóis, ajeitou-lhe as almofadas e sorriu com ternura. A imaginação da filha era, de facto, delirante. Na véspera, dia em que completara cinco anos, regressa de Colares extremamente inquieta: o chafariz da vila secara, e o que apenas causara estranheza aos adultos bastou para lhe atiçar a curiosidade. Na carruagem de regresso a Lisboa, não parou de perguntar por que razão não dera água a fonte e, como ninguém lhe soubera responder, ficou a fantasiar mil enredos. No fim da ceia, nem a caixinha de música que o avô Alorna lhe dera pelos anos nem a paciência da Feliciana a tinham conseguido acalmar. Fora difícil fazê-la adormecer. E agora aqueles gritos às cinco da madrugada, primeiro, com medo do silêncio, depois, debruçada na janela a adivinhar no céu o manto de uma estrela ausente. Era sem dúvida uma criança precoce, sabia de cor a história sagrada e a história profana, as parábolas da Bíblia e os deuses da mitologia pagã. Leonor parecia bem diferente da irmã, Maria, que no quarto ao lado dormia o sono dos justos, e do pequeno Pedro, que acabara de fazer um ano. Mãe! Pode ficar aqui, minha mãe? Tenho medo do silêncio. Calma, Leonorzita, já passou! Chiu! Não se ouve o ladrar dos cães, pois não, minha mãe? Para onde terão ido?
Por um instante ficaram as duas caladas. Com efeito, pensou dona Leonor, o costume seria ouvir-se na noite o ladrar dos muitos cães que vadiavam por Lisboa. Dizia-se que eram mais de oitenta mil. Leonorzita tinha razão, não se ouvia um único latir, um único som que fosse. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Tentando não dar importância ao estranho silêncio de que a filha falava, dona Leonor endireitou-lhe os folhos e os punhos de renda da camisa e passou-lhe a mão ao de leve pelos cabelos encaracolados que lhe emolduravam o rosto perfeito, de olhos vivos, curiosos, brilhantes. Dorme, Leonor, os cães também já dormem, como a Maria e o mano. Depois, continuando a acariciar suavemente o cabelo da filha, pôs-se a entoar uma cantiga de embalar, enquanto pedia a Deus que a sua Leonor se tornasse uma mulher forte, corajosa e saudável, uma mulher da sua estirpe, com a alma e a determinação Távora, a quarta Leonor Távora em linha directa. Assim que a pequena adormeceu, encostou as madeiras da janela e saiu do quarto, pé ante pé, deixando apenas uma fresta na porta. Já nos seus aposentos, tornou a deitar-se. Com os olhos presos nas pinturas do tecto, soprou a vela, e o quarto pareceu-lhe subitamente envolto em escuridão e desassossego. Não conseguiu adormecer». In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN 978-989-555-554-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT