quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Ensaio. Pedro Eiras. «É de um corpo que se trata, mas parece apenas outra paisagem, como no início do texto. O físico vê (é o narrador que enuncia…»

desenho de João Leme

«O físico prodigioso, primeiro incluído em Novas andanças do demónio (1966), é a possibilidade alegórica dessa humana divindade. A divisão simbólica em doze capítulos (seis de ascensão e seis de queda), a ficção medieval, a ambiguidade do nome (médico, corpo), o jogo de identidades entre as personagens (cavaleiro, diabo, Senhora, donzelas, frades), as alusões a mitos clássicos (Adónis, Bacantes) e ritos tradicionais, as referências cristológicas e pagãs, os códigos do amor cortês e do amor místico, tudo se congrega numa sagração do amor e da liberdade, da vida para além da morte, da redenção da condição humana nas metamorfoses de um corpo glorioso». In Instituto Camões

Notas sobre O Físico Prodigioso
«(…) Movimentos na horizontalidade e na verticalidade: eis uma cartografia sem lugares, que apenas assinala devires. E também a axiologia dos breves estados: porque o cavaleiro vertical é estranho na paisagem horizontal, porque o domínio sobre o cavalo é diferente da submissão à terra. Seria preciso pensar O Físico Prodigioso a partir desta gramática de diferenças. E o espaço é tão marcante a este nível que o próprio corpo de dona Urraca, doente, quando o físico a vê pela primeira vez, é como uma paisagem desigual; cito apenas um excerto de uma descrição maior: o pescoço era longo, e magro como os ombros. Mas da cava peitoral das clavículas os seios avançavam fortes, ainda que descaídos, em curva e contracurva, que mamilos crespos, largos e escuros, coroavam. Depois, a cinta era estreita, e as ancas, ossudas e largas, espetavam levemente as pontas de seus ossos, de que a barriga fluía redondamente como que precipitando-se no umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota. E, numa onda que se encurvava, o ventre descia para uma altura cuja outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale das coxas unidas.
É de um corpo que se trata, mas parece apenas outra paisagem, como no início do texto. O físico vê (é o narrador que enuncia, mas o ponto de vista é do físico: o cavaleiro olhou-a assim minuciosamente o corpo de dona Urraca como uma paisagem. Nada é indiferente: os seios são coroados por mamilos, as ancas espetam ossos, a barriga flui, o púbis cobre e desaparece entre as coxas. Nem falta, sintomaticamente, uma rede de metáforas e comparações que indiciam a paisagem natural: a barriga fluía (…) umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota (…) numa onda que se encurvava (…) outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale. Mar, montanha, vale, dona Urraca é uma horizontalidade cheia de lugares verticais. Apenas falta, para nomear esta paisagem, o desejo. Ele chegará na página seguinte: ondas tépidas percorreram o jovem, que viu, dentro do seu próprio corpo, as deusas enovelarem-se-lhe no baixo ventre, e se abaixou para elas, com os lábios entreabertos. O desejo chegará, sim, mas para exigir ao cavaleiro que se baixe, desmonte do seu saber teórico, seja terra. E esta descida não é uma escrita que contém o erotismo; já deve ter ficado claro que a própria escrita é o erotismo. Na expressão de Luís Carlos, se a nudez aparece pela mediação da palavra poética, é o discurso enquanto corporalidade que (…) se torna objecto de uma erotização e de um desnudamento radical». In Pedro Eiras, Metamorfoses 9, Rio de Janeiro / Lisboa, Caminho, Cátedra Jorge de Sena, UFRJ, 2008, p. 37-54, Jorge de Sena (1959-1965), Edições ASA, colecção Finisterra, 1977, ISBN 978-972-411-437-8.

Cortesia de Metamorfoses/EASA/JDACT