quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A Minha Prima Rachel. Daphne Du Maurier. «A chuva apodrecera-lhe os calções, senão o corpo, e tiras de tecido pendiam dos membros inchados como papel polposo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings. Mas agora já não. Hoje em dia, quando um assassino é punido pelo seu crime, acontece em Bodmin, após julgamento imparcial nos Assizes. Isto se a lei o condena antes de a consciência o matar. É preferível assim. Como uma intervenção cirúrgica. E o corpo tem um enterro decente, embora numa sepultura anónima. Quando eu era pequeno, as coisas não se passavam assim. Recordo-me, na adolescência, de ver um indivíduo pendurado em correntes no local onde as quatro estradas se encontram. O rosto e corpo tinham sido enegrecidos com alcatrão para os preservar. Esteve lá suspenso durante cinco semanas antes de o apearem, e foi na quarta que o vi. Oscilava entre o céu e a terra sobre o estrado de madeira ou, como o meu primo Ambrose referiu, entre o Céu e o Inferno. O Céu nunca ele alcançaria e, quanto ao inferno que conhecera, achava-se fora do seu alcance. Ambrose tocou no corpo com a bengala. Ainda consigo imaginá-lo, a mover-se com a deslocação do ar como um catavento num eixo enferrujado, um triste espantalho daquilo que fora um homem.
A chuva apodrecera-lhe os calções, senão o corpo, e tiras de tecido pendiam dos membros inchados como papel polposo. Era Inverno, e um brincalhão qualquer que passara colocara um ramo de azevinho na jaqueta rasgada, para celebração. Aos meus sete anos, aquilo afigurou-se o ultraje final, mas não me pronunciei. Ambrose devia ter-me levado lá com alguma ideia em mente; talvez para testar a minha coragem, ver se eu fugiria, riria ou choraria. Como meu tutor, pai, irmão e conselheiro, na realidade, como todo o meu mundo, estava sempre a pôr-me à prova. Lembro-me de que contornamos o estrado, enquanto ele explorava o corpo com a bengala, até que se deteve, acendeu o cachimbo e pousou-me a mão no ombro. Aqui tens no que todos acabamos, Philip. Uns no campo de batalha, outros na cama e outros ainda em conformidade com o seu destino. Não há fuga possível. Não podes aprender a lição demasiado cedo. Mas é assim que um assassino morre. Uma advertência para ti e para mim, no sentido de levarmos uma vida direita. Conservávamo-nos lado a lado, a ver o corpo oscilar, como se estivéssemos de visita à feira de Bodmin e o cadáver fosse um alvo para visar com bolas. Observa o que um momento de exaltação pode provocar numa pessoa, continuou.
Aqui tens Tom Jenkyn, honesto e estúpido, excepto quando bebia de mais. Sem dúvida que a esposa era rezingona, mas isso não justifica que a matasse. Se começássemos a eliminar as mulheres por causa das suas línguas aguçadas, quase todos os homens seriam assassinos. Eu preferia que ele não tivesse mencionado o nome do homem. Até então, o corpo fora uma coisa morta, sem identidade. Surgiria nos meus sonhos, sem vida e horrível, como me apercebi perfeitamente a partir do momento em que pousei a vista no cadafalso. Agora, relacionar-se-ia com a realidade e com o homem de olhos aguados que vendia lagostas no cais da cidade. Costumava encontrar-se junto dos degraus nos meses de Verão, com a cesta a seu lado, e punha os crustáceos a rastejar pelo chão numa corrida fantástica, para gáudio das crianças. Não havia muito tempo que eu o vira. Então?, perguntou Ambrose, observando-me a expressão. Que te parece? Encolhi os ombros e dei um pontapé na base do estrado. Não queria que ele reparasse no meu estado de espírito, que me percorria um misto de amargura e terror. De contrário, desprezar-me-ia. Aos vinte e sete anos, Ambrose era o deus de toda a criação, pelo menos de todo o meu reduzido mundo, e o único objectivo da minha vida consistia em emulá-lo». In Daphne Du Maurier, A Minha Prima Raquel, 1951, Editorial Presença, 2017, ISBN 978-972-236-046-3.

Cortesia de EPresença/JDACT