segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «O padre fez um sermão como se pregasse para peregrinos da Idade Média, que iam enfrentar um caminho desconhecido e cheio de perigos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O ser humano atormenta-se quando se aproxima dos esconderijos da morte, mas Maurício estava contente, porque vencera a primeira etapa da longa jornada, da qual restavam ainda centenas de quilómetros. Mas, era como se estivesse entrando num túnel do tempo para desvendar um passado que se ocultava em lendas e mistérios. Caminhou firme até o escritório da Colegiata, onde entregou o seu passaporte para ser carimbado. O passaporte do peregrino é uma identificação que lhe permite dormir nos albergues e, ao final da caminhada, receber a Compostelana, o certificado de que fez o Caminho. Para receber esse certificado, no entanto, precisava carimbá-lo em cada albergue onde dormisse, ou também nas prefeituras e igrejas. O selo de cada cidade é como um brasão e traz um profundo significado histórico. A importância do Caminho na Idade Média era tão grande, que quem tivesse a Compostelana era respeitado e obtinha benefícios da Igreja e dos nobres. Surgiu então o comércio de certificados falsos, vendidos como prova de que a pessoa fizera a peregrinação. A solução para evitar a fraude foi o passaporte do peregrino, que deveria ser carimbado nos lugares por onde passava. Cada cidade criou o seu próprio selo, com emblemas locais, o que faz do passaporte uma espécie de colceção de carimbos, como se fosse uma colecção heráldica.
Estava com as pernas e as solas dos pés doloridas. Dirigiu-se ao albergue, onde escolheu uma cama e marcou-a com a mochila. Roncesvalles mudara um pouco. No lugar do antigo abrigo de peregrinos, havia agora um hotel de turismo, e uma igreja de pedra do século XII fora transformada em albergue. Os banhos tinham água quente e, durante o mesmo, lavou as bermudas, camiseta, meias e lenço, para que chegassem secos ao próximo destino, onde então lavaria as peças que iria usar no dia seguinte. Sabia que não era conveniente deixar para tomar banho de manhã, porque o banho deixa húmida e sensível a sola do pé, facilitando o aparecimento das bolhas que infernizam a vida do caminhante. A Colegiata de Roncesvalles é palco de uma das mais marcantes solenidades do Caminho. A Missa do Peregrino é celebrada todos os dias às 20 horas, e essa cerimónia vem sendo repetida desde o século XI. A Bênção ao Peregrino é dada em espanhol, alemão, latim, inglês, português e outros idiomas.
Na peregrinação anterior, estava cansado e não resistira à cerveja gelada, chegando atrasado para a missa. O que ele não entendia era como o mestre daquela Confraria lá da Amazónia tinha ficado sabendo disso. Alguém tinha investigado a sua vida para saber de coisas que ele próprio certamente havia contado, numa dessas ocasiões em que as pessoas perguntam sobre as experiências do Caminho. Perdera a missa dos peregrinos por causa da cerveja e também não tirara as fotografias do túmulo de São Tiago porque colocara na máquina um filme já usado. Hoje, são comuns as máquinas digitais, mas naquele ano ele havia trazido uma de filme de rolo e colocara um filme já usado, perdendo as fotos. Estava ansioso para assistir agora a toda aquela cerimónia religiosa. Saiu do albergue com as sandálias ainda molhadas que colocara para tomar banho e dirigiu-se à igreja, arrastando as pernas e um forte pressentimento. A missa foi comovente. O padre fez um sermão como se pregasse para peregrinos da Idade Média, que iam enfrentar um caminho desconhecido e cheio de perigos. Naquela época certamente havia mais fé e todos rezavam com fervor, pedindo ajuda aos céus, porque sabiam dos perigos que os esperavam.
Muitos iam em busca de milagres ou de perdão para os seus pecados e aquela cerimónia ainda despertava emoções que traziam lágrimas aos olhos. Não se assiste mais a tantas curas pela fé, porque os santos foram substituídos pelo antibiótico, pela cortisona e pelas vacinas, enquanto os transplantes ressuscitam mortos. Apesar desses raciocínios que o deixavam em dúvida se Deus apenas mudara a forma dos milagres, substituindo a fé pela ciência, teve inveja dos peregrinos que comungaram e rezaram como se ainda estivessem na Idade Média, mas não se sentia católico bastante para tanta contrição. A alma pesada o acusava de que não estava fazendo o Caminho como uma busca, mas como uma fuga». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT