quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Isabel I. O Anoitecer de um Reinado. Margaret George. «O papa do povo, como gosta de ser conhecido, é um negociador inteligente. A recompensa não será dada até que os espanhóis realmente ponham os pés aqui»

Cortesia de wikipedia

Isabel. Maio de 1588
«(…) Nem preciso adivinhar o que sua santidade decretaria. A bula afirma..., estalei os dedos sinalizando a Burghley que me devolvesse o documento, e então consegui ler o seguinte: que os meus feitos e defeitos são tais que, citando a bula, alguns deles fazem-na incapaz de reinar, outros a declaram indigna de viver. Ele ainda afirma que me priva de toda autoridade e dignidades da realeza, declarando-me ilegítima e absolvendo os meus súbditos da obediência a mim. Assim, sua santidade (o antes grande inquisidor de Veneza) prepararia uma bela fogueira para mim. Estremeci. Não era brincadeira. Veio como ordem a todos para se aliarem ao exército católico do duque de Parma e do rei católico, isto é, Filipe II da Espanha. Ele concluía prometendo indulgência plena a todos que ajudassem a destronar-me. No final, acabei rindo mesmo.
Indulgências! Por que é exactamente isso o que o mundo ainda quer! Foi o abuso de indulgências que fez com que Martinho Lutero iniciasse a sua rebelião contra a Igreja Católica. Eles não são muito criativos em descobrir as novas recompensas, são? comentei, atirando a bula ao chão. Ele ainda ofereceu 1 milhão de ducados aos espanhóis como incentivo para invadir a Inglaterra. Fiquei olhando para Burghley e perguntei: ele está oferecendo uma recompensa por nós? Burghley fez que sim com a cabeça. O papa do povo, como gosta de ser conhecido, é um negociador inteligente. A recompensa não será dada até que os espanhóis realmente ponham os pés aqui. Não há pagamento antecipado. Então, de qualquer maneira ele ganha. Urubu maldito. Ele espera transformar a Inglaterra em carniça para que possa arrastá-la por aí? Nunca! Chame o secretário Walsingham e o conde de Leicester para uma reunião. Temos que discutir a situação antes da reunião do Conselho Privado. Vocês os três são os pilares do governo. Burghley discordou, balançando a cabeça. Sem falsa modéstia, sabe que é verdade. É o meu espírito. Leicester, meus olhos e Walsingham, meu vigilante mouro. Convoque a reunião para hoje à tarde. Levantei-me, sinalizando que a nossa conversa estava encerrada. Cuidadosamente coloquei os malditos papéis na minha caixa de correspondência e fechei-a.
Era hora do almoço. Geralmente, faço essa refeição na sala reservada e alguns criados auxiliam-me, embora a mesa principal esteja sempre posta no salão grande. Os cortesãos de baixo escalão e empregados almoçavam lá, mas o meu lugar permanecia vazio. Em determinado momento, perguntei-me se deveria fazer uma aparição pública naquele dia. Fazia quinze dias que não aparecia em público. Mas decidi não aparecer. Não queria expor-me num momento como aquele. A bula papal e a convocação de guerra contra mim deixaram-me mais abalada do que queria admitir. Devemos todas almoçar aqui, disse às minhas damas de companhia. Três delas eram mais íntimas: Catherine Carey, minha prima; Marjorie Norris, amiga desde minha juventude; e Blanche Parry, minha ama de muitos anos. Abra as janelas, pedi a Catherine. O dia estava bonito e tranquilo, daqueles em que as borboletas dançam pela rua. Alguns meses de Maio pareciam apenas invernos floridos, mas o clima daquele mês de Maio estava fresco e perfumado. Assim que as janelas se abriram, o mundo lá fora aproximou-se de mim com a sua brisa.
A mesinha estava arrumada no centro do quarto e ali não costumávamos usar todos os paramentos cerimoniais, com excepção do provador, que não dispenso. Os criados apresentavam os pratos por ordem e fazíamos as nossas escolhas sem delongas. Estava sem fome. A bula papal tirara-me o apetite. Mas não comia muito em geral e os pratos servidos não me chamaram atenção alguma. Marjorie, uma camponesa robusta de Oxfordshire, sempre comia bem. Mas naquele dia estava atacando a carne de porco cozida, utilizando a caneca de cerveja para ajudar a comida a descer. Catherine era baixinha e gordinha, mas só petiscava, por isso o rosto rechonchudo era um mistério. Marjorie era uns quinze anos mais velha que eu, Catherine uns quinze anos mais jovem do que eu. A velha Blanche Parry tinha mais de oitenta anos. No entanto, não enxergava mais, havia perdido a visão recentemente e passara a função de cuidar das joias reais para a jovem Catherine. Estava agora à mesa, comendo apenas por hábito e paladar, fitando o nada. Subitamente, tive o impulso de me aproximar para segurar-lhe a mão. Ela surpreendeu-se. Não a quis assustar, disse. Mas o toque daquela mão calma reconfortava-me. A senhora deveria envergonhar-se por ter assustado uma velha!, repreendeu-me». In Margaret George, Isabel I, O Anoitecer de um Reinado, tradução de Lara Freitas, Geração Editorial, 2012, ISBN 978-858-130-076-4.

Cortesia de GeraçãoE/JDACT