sábado, 11 de novembro de 2017

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Desde a morte de Quina, nunca mais a casa tivera aquela emanação de mistério grotesco ou ingénuo»

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«Há uma data na varanda nesta sala, disse Germana, que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores. Uma espécie de aristocracia ab imo. E Bernardo riu-se, cheio de uma ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal, colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal de unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da obscuridade para a luz, disse ainda, Ab imo, da terra, pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal, e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a. Pertencia ele ao ramo da família que do capitalismo ascendera ao posto imediato da intelectualidade e nisso fixara uma aristocracia. Pois que é a aristocracia senão o grau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia? A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação, pensava Germana, chegava a ser tão característico como uma originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em determinados povos. Bernardo Sanches era o exemplo duma raça heróica e magnífica enquanto a sua história fora uma questão de sobrevivência, mas que, com a segurança e o conforto, resultara numa brilhante mediocridade. Germana, sua prima, era por seu lado, um tipo fatídico das degenerescências, o artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma inutilidade imediata. Era ela uma criatura paciente, tímida, e que inspirava confiança sem limites. Os artistas, que, em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa. Ela tinha o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões, gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram, surgem de novo, idênticos à versão de outrora. Ela balançava-se activamente numa velha rocking-chair que, a cada impulso mais violento, pulava no sobrado, onde se acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de serrim. Tal como Quina, pensou. E, absorta, pôs-se a murmurar um lento monólogo, olhando à sua frente o caixilho da porta que comunicava com a cozinha, onde se via a pedra da lareira, arrumada e varrida de cinza.
Você que diz, Germa?, perguntou Bernardo. Perscrutava-a com uma curiosidade passageira, um tanto mortificado porque alguma coisa que não ele próprio o obrigava a inquietar-se. Como ela o fitasse apenas, sorridente e sem lhe falar, achou mais cómodo sentir-se ali o hóspede venerável, e tomar aquele silêncio ainda como uma cortesia. Mas, na verdade, Germa nem sequer pensava nele. Suspeitar isto, ele sabia, seria o bastante para que Bernardo não voltasse mais e estabelecesse no fundo da sua alma permanente disposição de vingança. Preferiu, portanto, ignorar que Germa estava nesse momento totalmente desligada e ausente de si, e que subitamente o ambiente ficara repleto doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, de tecto baixo, onde pairava um cheiro de pragana e de maçã, se enchia duma expressão humana e calorosa, como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde viveu, e o seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação. E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina. Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava o seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos que amarrotavam folhelhos amontoados em todos os sobrados. O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exaurida que se encontra num baque ondulante da folha, ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira do milho foi cortada. Desde a morte de Quina, nunca mais a casa tivera aquela emanação de mistério grotesco ou ingénuo; e Germa não encontrava mais sabor nos serões ao borralho, mexendo as achas, fazendo rodinhas de fogo-preso com o atiçador esbraseado, ou catando nos escanos o rapa do Natal, em cujas faces as letras tinham sido desenhadas com tinta venenosa de bagoinhas. Ah, Quina, tão estranha, difícil, mas que não era possível recordar sem uma saudade ansiada, quem fora ela?» In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT