quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Singularidades de Uma Rapariga Loura. Eça de Queirós. «Mas quando ele ia a dizer-lhe uma palavra reveladora e veemente, apareceu ao fundo do armazém o tio Francisco, com o seu comprido casaco de pinhão, de botões amarelos»

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«(…) Era um leque magnífico e naquele tempo inesperado nas mãos de plebeias de uma rapariga vestida de cassa. Mas como ela era loura e a mãe tão meridional, Macário, com intuição interpretativa dos namorados, disse à sua curiosidade: será filha de um inglês. O inglês vai à China, à Pérsia, a Ormuz, à Austrália e vem cheio daquelas jóias dos luxos exóticos, e nem Macário sabia por que é que aquela ventarola de mandarina o preocupava assim: mas segundo ele me disse, aquilo deu-lhe no goto. Tinha-se passado uma semana, quando um dia Macário viu, da sua carteira, que ela, a loura, saía com a mãe, porque se acostumara a considerar mãe dela aquela magnífica pessoa, magnificamente pálida e vestida de luto. Macário veio à janela e viu-as atravessar a rua e a entrarem no armazém! Desceu logo trémulo, sôfrego, apaixonado e com palpitações. Estavam elas já encostadas ao balcão e um caixeiro desdobrava-lhes defronte casimiras pretas. Isto comoveu Macário. Ele mesmo mo disse. Porque enfim, meu caro, não era natural que elas viessem comprar, para si, casimiras pretas.
E não: elas não usavam amazonas, não queriam decerto estofar cadeiras com casimiras pretas, não havia homens em casa delas; portanto aquela vinda ao armazém era um meio delicado de o ver de perto, de lhe falar, e tinha o encanto penetrante de uma mentira sentimental. Eu disse a Macário que, sendo assim, ele deveria de estranhar aquele movimento amoroso, porque denotava na mãe uma cumplicidade equívoca. Ele confessou-se que nem pensava em tal. O que fez foi chegar ao balcão e dizer estupidamente: sim, senhor, vão bem servidas, estas casimiras não encolhem. E a loura ergueu para ele o seu olhar azul e foi como se Macário se sentisse envolvido na doçura de um céu.
Mas quando ele ia a dizer-lhe uma palavra reveladora e veemente, apareceu ao fundo do armazém o tio Francisco, com o seu comprido casaco de pinhão, de botões amarelos. Como era singular e desusado achar-se o senhor guarda-livros vendendo ao balcão e o tio Francisco, com a sua crítica estreita e celibatária, escandalizar-se, Macário começou a subir vagarosamente a escada de caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delicada da loura dizer brandamente: agora queria ver lenços da Índia. E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel dourado. Macário, tinha visto naquela visita uma revelação de amor, quase uma declaração, esteve todo o dia entregue às impaciências amargas da paixão. Andava distraído abstracto, pueril, não deu atenção à escrituração, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas e não entendeu bem a recomendações do tio e a preocupação dos caixeiros sobre o desaparecimento de um pacote de lenços da Índia.
É o costume de deixar entrar pobres no armazém, tinha dito no seu laconismo majestoso o tio Francisco. São doze mil réis de lenços. Lance à minha conta. Macário, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu que ao outro dia, estando ele à varanda, a mãe, a de cabelos pretos, veio encostar-se ao peitoril da janela, e neste momento passava na rua um amigo de Macário, que, vendo aquela senhora, afirmou-se e tirou-lhe, como uma cortesia toda risonha, o seu chapéu de palha. Macário ficou radioso: logo nessa noite procurou o seu amigo, e abruptamente, sem meia-tinta: quem é aquela mulher que tu hoje cumprimentaste defronte do armazém? É a Vilaça. Bela mulher. É a filha? A filha? Sim, uma loura, clara, com um leque chinês. Ah!, sim. É filha. É o que eu dizia... Sim e então? É bonita. É bonita. É gente de bem, hem? Sim gente de bem. Está bom! Tu conhece-las muito? Conheço-as. Muito não. Encontrava-as dantes em casa de sra Cláudia. Bem, ouve lá». In Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura, 1873-1874, Contos, 1901, Sopa de Letras, 2013, ISBN 978-972-870-878-8.

Cortesia de SopadeLetras/JDACT