quinta-feira, 5 de outubro de 2017

O Diabo é um Homem Bom. Ana Miranda. «No dia-a-dia, o seu objectivo era tentar ser uma pessoa melhor, confessou. O maior desafio da sua vida. Apanhou-me pela curiosidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Nunca teve acusação formal, nunca teve advogado, nunca teve um médico. Ela sabia que ninguém viria socorrê-la. Ela sabia que existem pessoas assim, de quem ninguém quer saber. A fidelidade do contacto devia-se a isso, à sua clausura. Nessa altura, e já com três anos de pena cumprida, era uma reclusa com direito a antiguidade reconhecida o que lhe abria acesso a um certo número de privilégios, posição reforçada pelo sem fim de favores sexuais às guardas mais fogosas. O acesso à internet fora uma das recompensas assim obtidas. O pequeno ecrã tornara-se para ela o último reduto de liberdade, o único meio de ter uma vida. Anos mais tarde sei que foi um dos primeiros habitantes de Second Life onde criou uma rede de cabeleireiros. Jean7 parecia ser diferente, sincero. Tudo corria pelo melhor. Nos primeiros dados pessoais declarou ser engenheiro, tinha 36 anos. Nunca casado. Não tinha filhos. No dia-a-dia, o seu objectivo era tentar ser uma pessoa melhor, confessou. O maior desafio da sua vida.
Apanhou-me pela curiosidade. Imaginei que procurava, talvez, impressionar-me. De qualquer forma, não tinha nada a perder em tirar as dúvidas e, se por qualquer motivo, me surgisse algum pavor ou cobardia, tinha a firme intenção de prestar ouvidos a Raquel. Ela defendia abertamente a bondade natural de cada criatura. Refeita da doença, a minha melhor amiga tornara-se beata, piamente devota. Para Raquel, todas as pessoas são boas, convencida de que somos parte de um ser divino. Suspeitava da sua fé profunda, mesmo sem nunca termos falado do assunto. Por vezes, ela deixava escapar frases assim, sem se alongar demasiado sobre as suas convicções. Adivinhava-lhe, nos breves momentos de silêncio, uma alma profundamente religiosa que aprendera o valor de cada segundo, como se tivesse atravessado o infinito e tocado a divina fronte. A vida é um frágil milagre, Laura. Mas, sabes, o tempo é pouco e a aprendizagem lenta, costumava ela dizer. O tempo sempre esteve contra mim. Poderia, talvez, ter sido melhor se tivesse tido mais tempo.
Poderíamos, possivelmente, ser todos melhores se pudéssemos praticar a vida por longos períodos de existência, experimentando tudo, conhecendo todas as coisas da terra, do universo e uns dos outros. Acho que jamais, nem eu nem Raquel o saberemos. O que sei, com toda a certeza, é que uma vida é sempre curta. O que sei, com toda a certeza, é que uma vida dominada e ditada pela torrente das imagens é estupidamente mais curta. E donde nos vem, por vezes, esta vontade doentia de morrer, de antecipar o fim, perguntava a Raquel. E porque julgas tu poder escapar à angústia de ser e de estar vivo, respondeu no mesmo modo inquisitório e afectuoso. A angústia não é outra coisa que a tua mortalidade latente, Laura. É como se, uma vez aqui chegados, ninguém sobrevivesse à idade da adolescência, uma época de errância, terror e deslumbramento. Mesmo com duzentos anos de vida seriamos ainda adolescentes. Era tão raro vê-la fazer uso da palavra, que nesses momentos, esforçava-me para não abrir o bico. No fundo, irritava-me a serenidade com que ela pousava as palavras sobre a mesa e fazia deambular o olhar entre os ocupantes das cadeiras do Café Chantal, perto de Montmartre, nosso ponto de encontro habitual. Nesses momentos, Raquel irradiava a imponderada luz das tardes de Primavera, quando nem a brisa perturba o grávido repouso das árvores. Ela vivia nessa quietude diária, sem objectivos, sem planos para o dia seguinte nem para as horas mais próximas. Trabalhava num dos laboratórios do Institut Pasteur, no centro de Paris e, para além do seu universo microscópico de vírus e bactérias, nada a apressava, dando a impressão de que o mundo, à sua volta, era uma entidade invisível. Sentir-se-ia ela invisível para o mundo, perguntava-me. Conhecia nos seus últimos dias de hospital, saía eu das consultas externas e de uma recente depressão. Ela fumava no antro do edifício e aproveitei para pedir-lhe um cigarro. Lançou-se de imediato numa longa conversa encadeando os temas numa lógica imprecisa, deixava apenas pequenos espaços onde eu replicava sim, sim, pois claro». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom, Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.

Cortesia EChiado/JDACT