quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A Última Quimera. Ana Miranda. «O formato da bacia de Esther, assim como a sua pequena estatura, sugeria que o seu corpo não fora feito para a maternidade»

Cortesia de wikipedia

A plenitude da existência
«(…) E, de certa forma, juvenis. O café arrefeceu na minha chávena, intocado. Sentia-me por demais tenso com a presença de Augusto e com a proximidade de Esther, que devia estar então deitada na cama, descansando, talvez pensando na criança que perdera, quiçá, pensando em mim, julgando-me mais magro, ou mais feio, ou mais pálido. Talvez tivesse notado os fios brancos que havia na minha fronte. Naquele tempo eu tinha apenas vinte e seis anos, mas o meu aspecto era o de um senhor encovado que vivia de roupão nos subterrâneos. Augusto falou-me sobre as más condições daquele sobrado, onde o vento penetrava nas frestas; o quarto de dormir era gelado; a janela da cozinha, onde Esther passava a maior parte de seu tempo, havia muito que não podia ser aberta e a sua mulher ficava sujeita aos ares esfumaçados de carvão, andava a tossir; pairava no ar a poeira delectéria dos automóveis que passavam na rua, o gás que escapava das máquinas dos navios, o odor fétido de urina dos marinheiros e, onde havia marinheiros havia prostitutas e elas também exalavam ares perniciosos; aquele lugar talvez tivesse sido a causa do aborto do filho de Esther. Ele não falou, mas a proximidade do casal de tios, que moravam no andar de baixo, estava certamente atrapalhando a intimidade de Augusto, o que devia deixá-lo neurótico.
A sua asma voltava em acessos cada vez mais frequentes, e nem água com açúcar e gotas de láudano de Sydenham, a tintura de ópio, ou injecções subcutâneas de cloridrato de morfina, nem a inalação de éter iodídrico ou da fumaça das cigarrilhas de Barrai ou dos vapores de papel antiasmático, nem a tintura de Lobélia, nem as pílulas de tártaro istibiado de Trouette, nem as lentículas antiasmáticas G. Chanteaud, nem o xarope de caracol d'Henri Mure, nem os grânulos antimoniais de Papillaud, nem o xarope sulfuroso Grosnier, nem o xarope de codeína de Berthé, nem o emético de ipecacuanha, nenhum desses remédios largamente prescritos pelos médicos aos asmáticos e de efeitos subtis evitava que Augusto tivesse as suas recaídas. O seu quarto não era espaçoso, tampouco arejado, entretendo uma fraca luz diurna. Enfim, havia um número imenso de inadequações naquele lugar; mas ao mesmo tempo me pareceu vir a origem dos males de dentro da própria mente de Augusto, fruto da insatisfação de seu génio, do seu orgulho abalado.
O casal ia mudar-se dali, os donos do sobrado estavam voltando das férias e Augusto procurava outro lugar para habitarem. Ele pretendia engravidar novamente a sua mulher, queria ter nove filhos, encher a casa de rapazes, como fora a de seus pais, mas temia por algum risco e consultava madame Morand. A francesa dizia-lhe que Esther poderia tentar de novo, desde que se alimentasse de carnes gordas e papa de farinha. Esther estava demasiado magra para gerar crianças, dissera Madame Morand. Enxúndia em torno dos quadris protegia as crianças contra as frialdades. O formato da bacia de Esther, assim como a sua pequena estatura, sugeria que o seu corpo não fora feito para a maternidade.
Pensei em oferecer a Augusto a minha chácara em Botafogo; embora fosse distante, era um lugar de ares limpos, silencioso, Esther poderia caminhar pela areia da praia, respirando sal ou tomar banhos no mar prescritos por um médico; poderia assistir às corridas de cavalos, às regatas na baía; ou ver América Vespúcia escalando a pedra do Pão de Açúcar. Na casa havia muitos quartos vagos, onde o casal se poderia acomodar. Tenho até hoje a impressão de que ele se magoou por eu nunca lhe ter oferecido um pouso em minha casa, mas como poderia eu dizer-lhe que morava com Camila? Muitas vezes pensei em mandar Camila embora para poder acolher Augusto em minha casa, mas nunca tive coragem. Cheguei perversamente a desejar que ela morresse, era a única maneira de me libertar dela. De qualquer forma, Augusto jamais falou, directa ou indirectamente, sobre este assunto.
Responsabilidades pesadas me abarrotam a alma, ele disse, e, como um amálgama negro, engendram em mim uma tristeza malsinada. A nomeaçãozinha no Ginásio Nacional veio sanear um pouco o meu abalado território cerebral. Perguntei-lhe então por que não voltava para a Paraíba, e se ainda se sentia vítima de uma desilusão na sua própria terra, como ele mesmo me dissera ao partir, após perder a sua queda-de-braço com o Joque. Ele reflectiu longamente, tão longamente que se perdeu nos seus pensamentos e se esqueceu da minha pergunta, que ficou sem resposta. Mas eu sabia a resposta. Além de ter um inabalável senso de justiça, Augusto queria ser tratado como o filho dilecto, mesmo fora de casa, mesmo longe do engenho, mesmo por quem não era seu pai ou sua mãe. Castigava com a sua ausência os que não o cortejavam, como se fosse a pior das punições. E era. Quem um dia vivera perto de Augusto sofria a sua falta. A Paraíba tornou-se o fim do mundo após a partida de Augusto. Poucas semanas depois de me despedir dele no porto em Cabedelo, peguei o mesmo vapor e vim morar no Rio de Janeiro». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT