sábado, 30 de setembro de 2017

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «Mal se pode desculpar el-rei Sancho, nem nós o queremos livrar, nem ainda podemos, pois anda incerta no corpo do direito canónico a bula de sua deposição»

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Sancho II de Portugal. Fr. António Brandão (1632)
«(…) Outro aspecto, a que recorrentemente, a historiografia portuguesa volta, quando aborda o reinado de Sancho II, é o que diz respeito às notícias de agravos e desmandos que o rei de Portugal, por intermédio dos seus oficiais e validos, fazia às liberdades eclesiásticas. Como muitas outras, também estas informações já encontram lugar na narrativa de António Brandão. Contudo, a sua perspectiva volta-se para o facto de os desmandos de que a Igreja se queixava serem perpetrados por elementos ligados à coroa, mas sem conhecimento ou autorização do rei. As reacções da hierarquia eclesiástica são abordadas e indicadas as várias bulas papais com que o clero admoestava o rei português, procurando com isso levá-lo a tomar uma atitude mais firme sobre os seus homens. Responde o monge de Cister com o relato de obras pias, fundações de casas religiosas e generosas dotações fundiárias a ordens militares, bispados e abadias, um pouco por todo o país, o que contrastava abundantemente com as informações suspiradas pelas crónicas do passado, que davam conta apenas da incapacidade e insensibilidade do rei para com as coisas do clero. Por exemplo, podemos citar: mando se dê para as obras dos frades pregadores de Santarém trezentos maravedis e se reparta com eles da minha madeira de Lisboa e de outros lugares meus, a que lhes for necessária. Aliás, Franciscanos e Dominicanos foram largamente apoiados e financiados por Sancho, e Brandão não se cansa de dar exemplos dessa intensa ligação entre o soberano e aquelas ordens. Vastas páginas tratam da questão da deposição do rei em 1245, e como a ela recorreremos incessantemente, aqui deixamos o que nos parecem ser as principais opiniões de fr. António Brandão: não há dúvida que foram mui urgentes as causas que obrigaram ao Sumo Pontífice privar a el-rei Sancho do governo do reino, e a mandar em seu lugar o infante Afonso. Mal se pode desculpar el-rei Sancho, nem nós o queremos livrar, nem ainda podemos, pois anda incerta no corpo do direito canónico a bula de sua deposição em que vêem apontadas as cousas que moveram ao papa a fazer um extremo tão grande, como foi excluir a um rei do governo e administração de seu reino.
Resume, desta forma, o facto incontestável de que o rei foi deposto. Cita as diversas queixas formuladas junto da Santa Sé e a inevitabilidade política dessa mesma deposição. Curiosamente cita dois governantes de grande poder na Europa daquele tempo, e que estarão para sempre ligados, de maneiras diferentes, à deposição do seu congénere português. São eles, Frederico II, o imperador deposto no Concílio de Lyon, uma semana antes de Sancho e Luís IX, rei de França, patrono de Afonso de Bolonha e protector do papado. Voltaremos a falar deles. Lá estão, em Lyon, em plena actividade conciliar, os prelados portugueses mais envolvidos do que nunca na conjura para deporem o seu rei. Nomeia-os a todos: João, o arcebispo de Braga, Pedro, o bispo do Porto, Tibúrcio, bispo de Coimbra e junta-lhes laicos. Estes são nobres e vêem de Portugal, supostamente como embaixadores nomeados pelo rei, atitude que Brandão considera cínica. São eles Rui Gomes de Briteiros, infanção e mais tarde rico-homem do rei Afonso III e Gomes Viegas [Portocarreiro]. Importante é para Brandão o entendimento que o Bolonhês estabelece com aqueles prelados portugueses no coração do reino francês. Em Paris, e sob os auspícios do rei de França, Afonso de Bolonha, jura perante diversas testemunhas e pelos Evangelhos, o seguinte, que Brandão não resistiu em transcrever: eu, Afonso, conde de Bolonha, filho de Afonso de ilustre memória, rei de Portugal, prometo e juro sobre estes Santos Evangelhos de Deus, que por qualquer título que alcançar o reino de Portugal, guardarei e farei guardar a todas as comunidades, conselhos, cavaleiros e aos povos, aos religiosos e clero do dito reino todos os bons costumes e foros escritos e não escritos que tiveram em tempo de meu avô e de meu bisavô; e farei que se tirem todos os maus costumes e abusos introduzidos por qualquer ocasião ou por qualquer pessoa, em tempo de meu pai e irmão, e particularmente, quando se cometer homicídio, que se não leve dinheiro aos vizinhos do morto, mormente quando é manifesto quem foi o matador…» In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT