segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A Música dos Números Primos. Marcus Sautoy. «Em 7 de Abril de 1997, os computadores de todo o mundo matemático (…) anunciavam que o “Cálice Sagrado” da matemática fora finalmente encontrado»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Numa manhã quente e húmida de Agosto de 1900, o professor David Hilbert, da Universidade de Gottingen, postou-se frente aos cientistas que lotavam a sala de conferências do Congresso Internacional de Matemáticos, realizado na Sorbonne, em Paris. Hilbert já era considerado um dos maiores matemáticos da época e havia preparado uma palestra ousada. Falaria sobre o desconhecido, e não sobre o que já fora provado. Essa abordagem era contrária a todas as convenções habituais, e a plateia pôde notar o nervosismo na voz de Hilbert quando ele começou a esboçar a sua visão sobre o futuro da matemática. Quem de nós não gostaria de levantar o véu que esconde o futuro, vislumbrando os próximos avanços da nossa ciência e os segredos do seu desenvolvimento nos séculos que virão? Para anunciar o novo século, Hilbert desafiou a plateia com uma lista de 23 problemas que, segundo ele, ditariam o rumo dos exploradores matemáticos do século XX. Durante as décadas seguintes encontraram-se respostas para muitos desses problemas, e os seus descobridores passaram a integrar um ilustre grupo de matemáticos chamado de classe de honra, que inclui nomes como Kurt Godel e Henri Poincaré, ao lado de muitos outros pioneiros cujas ideias transformaram o panorama da matemática. Porém, um dos problemas, o oitavo da lista de Hilbert, parecia disposto a atravessar o século sem um vencedor: a hipótese de Riemann.
De todos os desafios lançados por Hilbert, o oitavo tinha algo de especial. Há um mito alemão sobre Frederico Barba-Ruiva, um imperador muito querido que morreu durante a Terceira Cruzada. Segundo a lenda, Barba-Ruiva ainda estaria vivo, adormecido numa caverna nas montanhas Ky ffhauser, e só despertaria quando a Alemanha precisasse dele. Conta-se que alguém perguntou a Hilbert: e se, como Barba-Ruiva, pudesse acordar após 500 anos, o que faria? Hilbert respondeu: eu lhe perguntaria, alguém conseguiu provar a hipótese de Riemann? Quando o final do século XX se aproximava, a maioria dos matemáticos haviam-se resignado à ideia de que essa pérola entre os demais problemas de Hilbert não sobreviveria apenas ao século, talvez continuasse sem resposta quando Hilbert despertasse de seu sono de 500 anos. Ele havia chocado a plateia do primeiro Congresso Internacional do século XX com a sua palestra revolucionária, rica de desconhecido. Porém, uma nova surpresa aguardava os matemáticos que planeavam participar no último congresso do século.
Em 7 de Abril de 1997, os computadores de todo o mundo matemático divulgaram uma notícia extraordinária. A página virtual do Congresso Internacional de Matemáticos, marcado para o ano seguinte em Berlim, anunciou que o Cálice Sagrado da matemática fora finalmente encontrado. A hipótese de Riemann havia sido provada. Essa notícia teria importantes efeitos, pois a hipótese de Riemann era um problema fundamental para toda a matemática. Os matemáticos liam o seu correio eletrónico entusiasmados com a perspectiva de entender um dos maiores mistérios da sua disciplina. O anúncio não poderia ter vindo de fonte mais confiável e respeitada, uma carta do professor Enrico Bombieri, um dos guardiões da hipótese de Riemann e membro do prestigiado Instituto de Estudos Avançados de Princeton, por onde já haviam passado Einstein e Godel. O seu discurso é sereno, mas os matemáticos sempre escutam atentamente o que ele tem a dizer.
Bombieri cresceu na Itália, onde os prósperos vinhedos da família o ensinaram a apreciar as boas coisas da vida. Os seus colegas chamam-no carinhosamente de aristocrata matemático. Quando jovem, cultivava uma imagem arrojada nas conferências europeias das quais participava, muitas vezes chegando em extravagantes carros desportivos, e gostava de espalhar o boato de que teria certa vez ficado em sexto lugar num rali de 24 horas na Itália. Seus êxitos no circuito matemático foram mais concretos e, nos anos 1970, renderam- lhe um convite para ir a Princeton, onde se estabeleceu desde então. Bombieri trocou o seu entusiasmo por ralis por uma paixão pela pintura, em particular por retratos. Porém, o que realmente o fascina é a arte criativa da matemática, em especial o desafio da hipótese de Riemann. Bombieri é obcecado pela hipótese desde a primeira vez que leu a seu respeito, com apenas 15 anos de idade. As propriedades dos números já o fascinavam na época em que vasculhava os livros de matemática que o seu pai, um economista, coleccionava numa extensa biblioteca. Bombieri descobriu que a hipótese de Riemann era considerada o problema mais profundo e fundamental da teoria dos números. A sua paixão pela questão cresceu ainda mais quando o seu pai lhe prometeu comprar um Ferrari se conseguisse resolver o problema, o pai de Enrico tentava desesperadamente fazer com que o rapaz parasse de pedir o seu carro emprestado.
De acordo com o seu e-mail, Bombieri perdera a disputa pelo prémio. A palestra de Alain Connes no IEA, na última quarta-feira, gerou um desenvolvimento fantástico, começava Bombieri. Vários anos antes, o mundo matemático ficara em alerta ao ouvir a notícia de que Alain Connes havia decidido dedicar-se à solução da hipótese de Riemann. Connes é um dos revolucionários desse tema, um Robespierre benigno da matemática frente ao Luís XVI representado por Bombieri. É uma figura extremamente carismática, cujo estilo apaixonado destoa muito da imagem do matemático sério e canhestro. Tem a motivação de um fanático que está convencido da sua visão do mundo, e as suas palestras são arrebatadoras. Seus seguidores praticamente o idolatram, adoram unir-se em barricadas matemáticas para defender o seu herói frente a qualquer contra-ofensiva das posições entrincheiradas do Antigo Regime». In Marcus Sautoy, A Música dos Números Primos, 2003, 2004 (Harper Perennial), Edições Zahar, 2007, ISBN 978-853-780-037-9.

Cortesia de EZahar/JDACT