domingo, 13 de agosto de 2017

Os Três Casamentos de Camila S.. Rosa Lobato Faria. «Mas a Paca considera que por baixo de uma senhora tem que haver uma mulher. Por isso, com uma cumplicidade só nossa, ensina-me a vida»

Cortesia de wikipedia e jdact

4 de Janeiro de 1902
«(…) Perdoai-me, padre, porque pequei. E que pecados tens? Guardo-me bem de dizer que não tenho nenhuns, já sei que é soberba presumirmos perfeição. Àfalta de melhor, repito o mesmo de todas as sextas-feiras desde o anúncio do meu noivado: pecado de desobediência em pensamento. A penitência não tem resultado? Não. Continuo a não querer casar com aquele velho de barbas, a Paca disse... O que é que disse a Paca? Não posso entregá-la, iriam despedi-la, o que para mim seria pior que a morte. Não posso dizer que a Paca tem vindo a avisar-me cuidadosamente que o Seabra se deitará na minha cama em ceroulas com uma racha na frente e atilhos nos tornozelos e, a cheirar a elixir, quererá beijar-me, quem sabe na boca. A Paca disse que eu devo obedecer aos meus tios, fazer o que me mandam, casar de boa vontade, mas eu só quero brincar, tocar piano e aprender o meu catecismo.
Sinto-me miserável com esta mentira mesquinha, mas o padre Rocha mostra-se agradado com a aplicação da sua aluna. É natural, minha filha. Tens apenas doze anos. Contudo, deves estar consciente dos teus deveres. E olha que o teu noivo não é tão velho, mas um rapaz na força da vida, mal passou os quarenta anos. Sinto-me morrer. Quarenta anos! E não é velho? Mais algum pecado, minha filha? Bom, às vezes digo mentiras, murmuro eu atrás dos buraquinhos do confessionário, tentando repor alguma decência perante Deus, que tudo sabe. Mentir é grave. Muito grave. A mentira é fonte de muitos males. E dá-me a absolvição em latim e manda-me rezar dez Padre-Nossos, dez Avé-Marias e dez Glórias. Penitência pesada, que me leva a concluir que não querer o Seabra na minha cama é um terrível pecado. Tão terrível como o pecado da carne, contra o qual venho sendo alertada desde os sete anos? Mesmo sem saber bem o que isto é, compreendo confusamente que há uma relação e uma contradição.
Saio da capela totalmente baralhada. Estou distraída na aula da dona Virgínia. Ela bate com a varinha no piano, não quero mãos, quero asas, mas hoje eu tenho pedras, coitado do Beethoven, que sorte ele ser surdo, não poderá ouvir o que lhe estou a fazer à sonata. Tem que saber, ao menos, duas sonatas completas. Uma senhora casada deverá entreter as suas visitas e já que a menina não tem voz para cantar, por amor de Deus, Camilla!, ao menos toque aceitavelmente duas sonatas do mestre e todas as valsas de Chopin. É o mínimo que se exige a uma senhora bem educada. Alguma vez saberei ser uma senhora, saberei ser bem educada? Sinto-me um fracasso. Quero a Paca. Só ela consegue dizer-me as palavras certas, fazer-me sentir uma rainha, uma fada, uma deusa, só ela penetra e enfeita o mundo maravilhoso da minha adolescência nascente, só ela me entende, só ela me ama.
O senhor Rudolfo ensina-me a matemática, a gramática, história e a geografia. O padre Rocha as ciências e o catecismo. A tia Joséphine, o francês e a etiqueta. Agora estou a receber à pressa umas noções de prendas domésticas e com isto se completa a minha educação. A tia Joséphine já me avisou que depois de casada irei frequentar, só de manhã, o colégio das irmãs Doroteias, que funciona em Lisboa no Convento das Inglesinhas, ao Quelhas. Aí aprenderei coisas novas, como a pintura, os lavores femininos, prometem-me até um pouco de literatura com que possa fazer conversa espirituosa num salão. Pensam meus bons tios e provavelmente o meu douto marido que isto é tudo o que uma senhora deve saber. Mas a Paca considera que por baixo de uma senhora tem que haver uma mulher. Por isso, com uma cumplicidade só nossa, ensina-me a vida». In Rosa Lobato Faria, Os Três Casamentos de Camila S., Edições Asa, Porto, 3ª Edição, 1997/1999, ISBN 972-41-1904-1.

Cortesia ASA/JDACT