quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O Harém de Kadafi. Annick Cojean. «Declaravam-se aristocratas, famílias da corte, diante dos jecas e caipiras das outras cidades. Você é de Zliten? Grotesco! De Benghazi? Ridículo. Da Tunísia? Que vergonha!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Era ela quem acabava arcando com as contas da família. Ralava dia e noite, sempre à espera de algo que nos levasse para bem longe da Líbia. Eu sabia que ela era diferente das outras mães, e por isso começaram a tratar-me com desprezo na escola, eu era a filha da tunisiana. Isso magoava-me. Os tunisianos eram tidos como modernos, emancipados, e em Benghazi, acredite se quiser, essas qualidades não eram bem-vistas. E eu, tola, senti-me depreciada. Desejava que meu pai tivesse escolhido como esposa alguém do próprio país. Por que foi casar-se logo com uma estrangeira? Não pensou nos filhos? Meu Deus, como eu era idiota!
Quando eu estava com onze anos, o pai anunciou que nos mudaríamos para Sirte, cidade também da costa mediterrânea, entre Benghazi e Trípoli. Ele queria aproximar-se do berço familiar, de seu pai, um homem muito tradicional, que tinha quatro esposas, de seus irmãos e primos. Na Líbia é assim: as famílias procuram formar grupos em torno do mesmo bastião, que supostamente lhes dará força e sustentação incondicionais. Em Benghazi, sem raízes nem relações, éramos como órfãos. Pelo menos foi assim que o pai nos explicou. Mas para mim a notícia foi uma catástrofe. Deixar a escola? Minhas amigas? Que drama! Fiquei doente. Doente de verdade. De cama por duas semanas. Incapaz de me levantar para ir à nova escola. E então finalmente eu fui. Com o coração apertado. E logo percebendo que não seria feliz. Antes de tudo, tenho de dizer que aquela era a cidade natal de Kadafi. Ainda não falei da figura porque não se tratava de uma preocupação nem de tema de conversa em casa. A mãe nitidamente o detestava. Mudava de canal sempre que ele aparecia na TV, referia-se a ele como o descabelado e repetia, sacudindo a cabeça: francamente, esse tipo lá tem cara de presidente? O pai, penso eu, tinha medo e mantinha-se mais reservado. Intuitivamente, todos nós percebíamos que, quanto menos se falasse dele, melhor seria; o menor assunto que saísse do núcleo familiar poderia passar de boca em boca e nos trazer grandes problemas. Sem fotos dele em casa e sobretudo sem militância. Digamos que, por instinto, éramos todos cautelosos.
Na escola, em contrapartida, era uma adoração. A sua imagem era onipresente; cantávamos o hino nacional todas as manhãs diante de um imenso póster de Kadafi ao lado da bandeira; diziam todos, entusiasmados: tu és nosso Guia, marchamos atrás de ti, blá-blá-blá; e, fosse na sala de aula ou no intervalo, os alunos se gabavam de meu primo Muamar, meu não-sei-o-quê Muamar, enquanto os professores falavam dele como um semideus. Não, como um deus. Ele era bom, zelava pelas crianças, tinha todos os poderes. Devíamos todos chamá-lo de pai Muamar. A sua estatura parecia-nos gigantesca. Havíamos-nos mudado para Sirte para ficar perto da família e nos sentir mais integrados no seio da comunidade, mas não valeu a pena. As pessoas de Sirte, aureoladas por seu parentesco ou proximidade com Kadafi, achavam-se donas do universo.
Declaravam-se aristocratas, famílias da corte, diante dos jecas e caipiras das outras cidades. Você é de Zliten? Grotesco! De Benghazi? Ridículo. Da Tunísia? Que vergonha! A mãe, decididamente, não importava o que fizesse, seria alvo de humilhação. E quando abriu, no centro da cidade, não muito longe de casa na Rua Dubai, o seu lindo salão de beleza, que as elegantes de Sirte passaram a frequentar, o desprezo só aumentou. Apesar de tudo, ela tinha talento. Todos reconheciam a sua habilidade em fazer os mais belos penteados da cidade e maquiagens fabulosas. Aliás, tenho a certeza de que era invejada. Mas não imagina como Sirte é massacrada pela tradição e pelo excesso de pudores. Uma mulher sem véu pode ser insultada na rua. E, mesmo com véu, é suspeita. Que diabos faz aqui fora? Não estará atrás de aventura? Será que tem um caso? As pessoas espionavam-se, os vizinhos observam as idas e vindas na casa da frente, as famílias sentem inveja umas das outras, protegem as suas filhas e falam mal das outras. A máquina de intrigas fica ligada o tempo todo.
Na escola, o problema era dobrado. Eu não era só a filha da tunisiana, mas também a menina do salão. Eu procurava um banco e ficava ali sozinha, sempre esquiva. E nunca poderia ter uma amiga líbia. Um pouco mais tarde, felizmente, simpatizei com uma garota que era filha de um líbio e de uma palestina. Depois, com uma marroquina. Então, com a filha de um líbio e de uma egípcia. Mas com as meninas da terra, jamais. Mesmo quando certa vez menti, dizendo que minha mãe era marroquina. Parecia-me menos grave que tunisiana. Foi pior. Minha vida então passou a girar quase que só em torno do salão de beleza. O salão virou o meu reino». In Annick Cojean, no Harém de Kadhafi, Editora Albatroz, Porto Editora, colecção Memórias e Testemunhos, 2014, ISBN 978-989-739-010-4.

Cortesia de EAlbatroz/JDACT