sábado, 22 de julho de 2017

Os cavaleiros de Carneiro e a herança da cavalaria vilã na Estremadura. Os casos de Arruda e de Alcanede. Luís Filipe Oliveira. «Ignora-se como o alcaide conduzia aqui o ritual de recepção de um novo cavaleiro, ou se também seria agraciado por quem não era filho de cavaleiro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As informações são mais completas para os cavaleiros de Arruda, graças a um documento com os Costumes da Vila, que foi elaborado pelos juízes da terra, em obediência a um alvará do Infante João datado de Alcácer, a 15 de Fevereiro de 1434. A cavalaria de costume apresentava aí um carácter voluntário, à qual todos podiam aceder, embora o filho de cavaleiro fosse dispensado de presentear o alcaide com dois frangões, caso quisesse ser feito cavaleiro por ocasião do seu casamento. A cerimónia de entrada tinha lugar em Maio e desenrolava-se num espaço público, devendo o candidato caualgar em çima de hüu cauallo e hijr peramte os Juizes e vereadores procurador e homeens boons E o alcaide que he posto por o senhorio E o que quiser ser caualleiro ha de dizer assy aos dictos Juizes e homeens boons Eu quero ouyr e gouuyr dos vsos e foros e boons costumes e quero sser caualleiro E emtam diram os homeens boons e alcaide que ho am por caualleiro. Ao contrário dos fidalgos de linhagem e dos cavaleiros de espora dourada, que dela estavam isentos, o cavaleiro de costume pagava a cavalaria durante o mês de Maio, no valor de 3 libras antigas, mas comunicava a honra à mulher e aos filhos menores. Em rigor, era a satisfação desta taxa recognitiva que lhe garantia o foro de cavaleiro e a isenção fiscal, acarretando o incumprimento dessa obrigação a devassa da sua honra, com o porteiro da Ordem a lamçar hüa porta do que assy non quiser pagar fora do conçe[lho] e lamça lla em terra. Mau grado as diferenças que entre eles se detectam, em boa parte devidas à natureza da informação disponível, os cavaleiros de Arruda e de Alcanede não deixam de partilhar diversas características comuns. Nas duas vilas, o estatuto de cavaleiro está claramente associado à isenção fiscal e à satisfação de uma taxa fixa, embora se desconheça quando eram devidos os alqueires de trigo pagos pelos cavaleiros de Alcanede. Mais evidente no caso de Arruda, onde se exigia a presença do alcaide e de toda a governação, nem por isso se perdera, em Alcanede, a publicidade necessária ao ritual de entrada em cavalaria. Nesta localidade, a cavalaria podia ser conferida pelo progenitor do candidato, mas a cerimónia não decorria longe dos olhares de todos, pois continuava a coincidir com o dia da boda, que marcava a entrada na vida adulta, e a ser caracterizada por gestos que ostentavam a riqueza possuída. Ignora-se como o alcaide conduzia aqui o ritual de recepção de um novo cavaleiro, ou se também seria agraciado por quem não era filho de cavaleiro, como ocorria na Arruda, mas talvez lhe estivesse destinado o tarraço de vinho que outros britavam contra uma parede.
As cerimónias descritas nestas vilas da Estremadura parecem corresponder, portanto, aos vestígios de um antigo ritual de entrada em cavalaria. A realização da cerimónia no mês de Maio, durante o qual se satisfaziam, por outro lado, as três libras da cavalaria, não deixa de recordar, com efeito, a época escolhida para os alardos concelhios e para o pagamento da antiga taxa de substituição do fossado, o morabitino de Maio. O carácter voluntário desta cavalaria de carneiro, muito evidente nos costumes de Arruda, também guarda alguma relação com a situação documentada na Estremadura durante os séculos XII e XIII, onde a cavalaria não tinha uma base censitária e o peão podia ascender de categoria, caso adquirisse um cavalo. A mesma homologia revela-se, ainda, na tradição de reservar ao alcaide um papel decisivo na recepção dos novos cavaleiros, tal como então se verificava nos concelhos de Lisboa e de Santarém. Segundo os costumes de Santarém comunicados ao Alvito, também cabia ao alcaide o direito a ser honrado pelo peão que queria ser arrolado entre os cavaleiros, embora o filho de cavaleiro estivesse dispensado de tal oferta, como sucedia na Arruda, e, quiçá, em Alcanede.
Talvez se possa aproximar destes testemunhos o ritual documentado em Tomar, a 3 de Abril de 1385, embora não seja certo que se tratem de cavaleiros de carneiro, quer pela ausência desta designação degradante, quer pelo facto de eles possuírem, pelo menos, uma arma ofensiva. Neste caso, a cerimónia tinha lugar por ocasião da boda do candidato a cavaleiro, o qual deveria então montar um cauallo cum hüa lança na maão e leuaua hüu alqueire de pam amasado e hüu cantaro de vinho e chegaua aa porta do castello da dicta villa e ferya com a lança em ella e dizia caualleiro quero eu seer E emtam leuaua o que hi staua por alcaide o dicto pam e vinho E se esto nom fizese auja ho alcaide de leuar delle a oytaua dos seus beens e se esto fizese nom auja delle de leuar nada. Quase todas as características atrás descritas se encontram aqui presentes, desde a isenção fiscal ao carácter público e voluntário da cerimónia, sem esquecer a data desta e as ofertas ao alcaide. Por tudo isso, não é de todo seguro que uma simples lança fosse capaz de os distinguir dos cavaleiros de carneiro, ou que pudesse identificá-los com os cavaleiros de quantia. De acordo com um artigo das Cortes de Elvas de 1361, estes últimos deviam possuir um equipamento militar bem mais caro e diverso, onde entravam diversas protecções do corpo e da cabeça, pelo que os cavaleiros de Tomar só com dificuldade se incluiriam entre os mais recentes cavaleiros de quantia.
Os cavaleiros de carneiro e de costume parecem ser, portanto, os herdeiros remotos da antiga cavalaria vilã da Estremadura. Mas essa herança também se alterara, entretanto. Em termos gerais, perdera-se a memória da prestação de um serviço militar e a honra do cavaleiro dependia agora do pagamento de uma taxa de substituição. A degradação do estatuto fôra ainda maior em Alcanede, onde aquela taxa se satisfazia em géneros e mal se distinguia dos outros foros, enquanto o ritual de entrada em cavalaria perdera boa parte da sua dimensão pública, sem que se transformasse, contudo, numa cerimónia doméstica e familiar. Nas suas vilas de origem, os cavaleiros guardavam intacta a honra e a isenção fiscal, mas a sua cavalaria dizia-se agora de carneiro, de tarraço, ou de costume, vendo-se qualificada com termos um pouco enigmáticos e degradantes, talvez porque se perdera o costume de entregar um carneiro em substituição do fossado, como em tempos acontecia nalgumas vilas castelhanas dos séculos XI e XII. De qualquer modo, essas designações pouco prestigiantes da sua cavalaria não deixavam de reflectir, afinal, a degradação do seu estatuto pessoal, para lá dos limites da vila onde viviam e moravam». In Luís Filipe Oliveira, Os cavaleiros de Carneiro e a herança da cavalaria vilã na Estremadura. Os casos de Arruda e de Alcanede, Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Revista Medievalista, ano 1, número 1, 2015, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT