sábado, 15 de julho de 2017

Moça com Brinco de Pérola. Tracy Chevalier. «Não consegui pensar em nada que não parecesse acusação. Desculpa, Griet, gostaria de ter feito melhor por ti»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando a minha mãe voltou, eu estava sentada, usando a máquina de legumes. Aguardei que ela falasse. Ela estava com os ombros encolhidos como se enfrentasse um frio de Inverno, embora fosse Verão e a cozinha estivesse quente. Amanhã começas como criada deles. Se for bem, vais receber oito tostões por dia. Vais morar lá. Apertei os lábios. Não me olhes assim, Griet. Temos de fazer isso, agora que o teu pai perdeu o ofício. Onde eles moram? Na Oude Langendijck com a Molenpoort. Na Esquina dos Papistas? São católicos? Podes vir para casa aos domingos. Eles concordaram. Minha mãe juntou os nabos com um pouco de repolho e cebola e jogou tudo na panela com água, no fogo. Acabaram-se as fatias de torta que eu havia arrumado com tanto cuidado. Subi a escada para ver o meu pai, sentado à janela da frente do sótão, com o sol batendo no seu rosto. A luz era o máximo que ele podia enxergar. O pai tinha sido pintor de azulejos, os seus dedos ainda estavam manchados de azul, de pintar cupidos, donzelas, soldados, navios, crianças, peixes, flores, animais em azulejos brancos, vitrificando-os, secando-os no forno e vendendo-os. Um dia, o forno explodiu e lá se foram os olhos e o ofício. Teve sorte: dois homens morreram. Sentei-me ao seu lado e segurei a mão dele. Ouvi, ouvi tudo, disse ele, antes que eu falasse. A audição tinha substituído a visão que lhe faltava.
Não consegui pensar em nada que não parecesse acusação. Desculpa, Griet, gostaria de ter feito melhor por ti. O lugar onde ficavam os seus olhos, onde o doutor havia costurado a pele, parecia triste. Mas ele é um bom cavalheiro e educado. Vai cuidar bem de ti. O pai não disse nada sobre a mulher. Como pode ter a certeza, pai? O senhor conhece-o? Não sabe quem ele é? Não. Lembras-te do quadro que vimos na prefeitura, alguns anos atrás, que van Ruijven estava expondo depois que o comprou? Uma paisagem de Delft, dos portões de Roterdão e Schiedam, com o céu, que tomava grande parte do quadro e a luz do sol batendo em algumas construções. A tinta tinha areia para que tijolos e tectos parecessem ásperos, acrescentei. E havia longas sombras na água e pessoas pequenas na praia mais próximas de nós. Esse mesmo. As órbitas do pai se esticaram como se ainda tivessem olhos e vissem o quadro outra vez. Lembrava-me bem, eu estivera várias vezes naquele lugar e nunca vira Delft como o pintor.
Aquele homem era van Ruijven? O mecenas? Não, não, filha. É o pintor Vermeer. Johannes Vermeer e a esposa. Você vai trabalhar como criada no atelièr dele. Minha mãe colocou mais uma touca, uma gola e um avental nas poucas coisas que eu estava levando, de modo que todo dia eu pudesse lavar um e usar o outro, e estar sempre limpa. Ela me deu também um pente de tartaruga para enfeitar o cabelo, em forma de concha, que tinha sido de minha avó, muito fino para uma criada usar, e um livro de orações que poderia ler quando precisasse fugir do catolicismo à minha volta. Enquanto juntávamos as minhas coisas, ela explicou por que eu precisava trabalhar com os Vermeer. Sabias que o teu novo patrão é chefe da guilda de São Lucas desde que seu pai sofreu o acidente, no ano passado? Concordei, ainda assustada por ter de trabalhar com tal artista.
A guilda funciona do jeito que dá. Lembras-te daquela caixa onde o teu pai depositou dinheiro todas as semanas, durante anos? Esse dinheiro vai para mestres necessitados, como nós estamos. Mas é pouco, principalmente agora que Frans está como aprendiz e não recebe nada. Não temos outra saída. Não queremos caridade pública, pelo menos nos esforçaremos para não aceitar. O seu pai soube que o seu novo patrão estava precisando de uma criada para limpar o atelièr sem tirar nada do lugar e então sugeriu o teu nome, achando que, como chefe da guilda e sabendo da nossa situação, Vermeer tentaria ajudar. Pensei em tudo que ela havia dito e perguntei: como se limpa um lugar sem tirar nada?» In Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.

Cortesia de BertrandB/JDACT