sábado, 15 de julho de 2017

Moça com Brinco de Pérola. Tracy Chevalier. «Toda a nossa família, até meu pai e meu irmão, tinha baixa estatura. A mulher parecia ter sido soprada pelo vento, embora estivesse um dia sereno»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Minha mãe não me contou que eles estavam vindo. Depois, disse que não queria que eu parecesse nervosa. Fiquei surpresa, porque achava que ela me conhecia bem. Estranhos poderiam pensar que eu estava calma. Não chorei como um bebé. Só a minha mãe notaria o meu maxilar duro, os meus olhos grandes mais arregalados. Cortava legumes na cozinha quando ouvi vozes na porta da frente de nossa casa: uma voz feminina e radiante como latão polido, e a de um homem, grave e sombria como a madeira da mesa onde eu estava a trabalhar. Eram vozes que raramente ouvíamos em nossa casa. Havia nelas ricas alcatifas, livros, pérolas e peles. Fiquei contente por ter esfregado tanto os degraus da frente. A voz de minha mãe, uma caçarola, uma jarra, veio da sala da frente. Eles se encaminhavam para a cozinha. Afastei os alhos-pôros que estava cortando, coloquei a faca na mesa, limpei as mãos no avental e apertei os lábios para acalmá-los. Minha mãe surgiu na porta da cozinha, os olhos eram dois avisos. Atrás dela, a mulher teve de abaixar a cabeça por ser bem alta, mais do que o homem que a seguia.
Toda a nossa família, até meu pai e meu irmão, tinha baixa estatura. A mulher parecia ter sido soprada pelo vento, embora estivesse um dia sereno. A sua touca estava torta. Por isso, pequenos cachos louros apareciam e caíam na testa dela como abelhas que ela precisou afastar várias vezes, impaciente. A gola estava frouxa e não tão engomada como deveria. Ela empurrou o manto cinza para trás dos ombros e vi então que sob o vestido azul escuro crescia um bebê. Chegaria lá pelo final do ano, ou antes. O rosto da mulher era como uma terrina oval, às vezes vivo, outras sem graça. Os olhos eram dois luminosos botões castanhos, cor que raramente vi combinando com cabelos louros. Ela fez que me ia examinar com atenção, mas não conseguiu. Seus olhos percorreram a cozinha. Então, é esta a moça, concluiu ela, de repente. É minha filha, Griet, acrescentou minha mãe. Fiz um gesto respeitoso para o casal, concordando, bom, não é muito grande, será que vai ter força? Quando a mulher se virou para falar com o homem, a ponta do manto que vestia bateu no cabo da faca que eu estava usando, fazendo-a cair e girar no chão. A mulher soltou um grito.
Catharina, chamou o homem, tranquilo. Pronunciou o nome dela como se tivesse canela na boca. A mulher fez um esforço para se acalmar. Peguei a faca, limpei a lâmina no meu avental e tornei a colocá-la na mesa. A faca havia esbarrado nos legumes. Recoloquei um pedaço de cenoura no lugar. O homem olhava-me, os seus olhos cinzentos como o mar. Tinha um rosto comprido, anguloso, de expressão firme, em comparação com a da esposa, que tremulava como a chama de uma vela. Não usava barba nem bigode, e gostei, porque isso lhe dava uma aparência limpa. Tinha um capote negro nos ombros, camisa branca e uma linda gola de renda. O chapéu apertava os cabelos que eram ruivos da cor de tijolo lavado pela chuva. O que estava fazendo, Griet?, perguntou ele. Fiquei espantada, mas sabia como disfarçar. Estava cortando legumes, senhor. Para a sopa. Eu sempre colocava os legumes num círculo, cada um numa parte, como fatias de torta. Havia cinco fatias: repolho roxo, cebola, alho-pôro, cenoura e nabo. Usei a ponta de uma faca para fazer cada fatia e coloquei uma rodela de cenoura no centro. O homem tamborilou os dedos na mesa.
Estão na ordem em que vão ser colocados na sopa?, perguntou, examinando o círculo. Não, senhor. Fiquei constrangida. Não conseguia dizer por que tinha arrumado os legumes daquele jeito. Achei que deviam ficar assim, mas estava muito assustada para dizer isso para um cavalheiro. Vejo que separou os brancos, disse ele, indicando os nabos e cebolas. Depois, o laranja e o roxo não estão juntos: por quê? Pegou uma tira de repolho e uma rodela de cenoura e misturou-os como dados na mão. Olhei para a minha mãe, que concordou discretamente, num gesto de cabeça. As cores brigam quando ficam lado a lado, senhor. Ele franziu o cenho, como se não esperasse aquela resposta. E gasta muito tempo arrumando os legumes antes de fazer a sopa? Ah, não, senhor, respondi, confusa. Não queria que ele pensasse que eu era preguiçosa.
Com o canto do olho, vi um movimento. Minha irmã Agnes estava olhando da porta e balançou a cabeça por causa da minha resposta. Eu não costumava mentir. Olhei para baixo. O homem virou um pouco a cabeça e Agnes sumiu na porta. Ele colocou a cenoura e o repolho nas tiras correspondentes. A tira de repolho invadiu o espaço das cebolas. Tive vontade de colocá-la no lugar. Eu não sabia, mas ele sabia que eu queria fazer isso. Estava testando-me. Chega de conversa, decidiu a mulher. Não estava gostando da atenção que ele me dava, mas foi para mim que olhou, séria. Amanhã, então? Olhou para o homem antes de sair da cozinha, seguida por minha mãe. O homem deu mais uma olhada no que seria a sopa, despediu-se com um gesto de cabeça e acompanhou a mulher». In Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.

Cortesia de BertrandB/JDACT