segunda-feira, 24 de julho de 2017

Marcas do Quotidiano nos Monumentos Funerários. A Representação de Animais na Tumulária Medieval do Entre-Douro-e-Minho. Pedro Chambel. «Gerd Heinz-Mohr considera que formas e figuras de serpentes em cajados lembram o aspecto positivo da serpente de bronze, o símbolo de Cristo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Neste caso, tanto a representação dirigida para o olhar terreno, a do lateral, como aquela que se orienta para o Além, a da tampa funerária, manifestam a mesma intenção, ou seja, marcar o estatuto social de um nobre guerreiro em que a profissão de homem-de-armas se integra numa memória familiar linhagística. Não significa isto, no entanto, a escolha de uma imagem puramente leiga por parte do senhor representado no sarcófago de Pombeiro. Com efeito, no Ocidente medieval, em particular a partir do século XII, a cavalaria encontrava-se associada ao desempenho de uma missão sagrada na Terra, a efectuar no quadro da ideologia trifuncional da sociedade, e tendo como manifestação um vasto conjunto de práticas altamente ritualizadas, destinadas aos futuros membros da sacralizada sociedade cavaleiresca. Na Península Ibérica, este aspecto encontrava-se associado, desde o século XII, à participação cruzadística dos bellatores na luta contra o Infiel, sendo a importante presença das ordens militares no reino, uma das suas mais visíveis manifestações. Sendo assim, não é de todo estranho a preocupação evidenciada pelo nobre tumulado em Pombeiro se fazer representar perante o divino ostentando elementos próprios da sua actividade guerreira, ou seja, a espada e as esporas, até porque, enquanto na sua representação cavaleiresca para os vivos ele surge em combate, para o Além ele associa-se a uma atitude de guerreiro em repouso, simbolicamente alheado dos momentos de combate e preparado para uma luta que já não é a terrena, tendo como objectivo conquistar um lugar na corte dos eleitos.
Em suma, torna-se patente, nestes exemplos, a existência de uma topografia tumular simbólica que se expressa nas distintas representações utilizadas nos diferentes espaços constituintes do sepulcro. Elas encontram-se, assim, distribuídas segundo um eixo vertical que sobe da base para a tampa, onde se pode encontrar ou não um jacente. A base do túmulo, onde se encontram, frequentemente, representações de animais que serão objecto deste estudo, marca a parte inferior. Segue-se depois, em ascensional dignidade iconográfica, a arca tumular propriamente dita, na qual se distinguem as partes da cabeceira, laterais e a secção dos pés, onde se ostentam imagens que marcam, ora a vivência terrena do defunto, ora a sua ligação familiar, ou mesmo, a sua aspiração de vir a participar do grupo dos eleitos, sobretudo no caso de aí figurarem representações iconográficas de entidades celestes, capazes de sancionar especiais protecções no momento da morte. Finalmente, após esta zona do túmulo orientada para o olhar dos vivos e dos vindouros, encontra-se a tampa virada para o Céu. Aí, é para a divindade a quem o defunto se apresenta e apela, seja por sinais codificados e figurações, ou, de uma forma mais clara, pela sua própria representação na figura do jacente. De uma forma geral, é no quadro desta orientação da topografia simbólica do sepulcro que o nosso estudo sobre a representação e simbolismo dos animais na tumularia foi conduzido. Assim, sendo os animais concebidos como os mais próximos participantes do mundo terreno e envolvente do homem, verificaremos como as suas figurações nos túmulos se tornam mais proeminentes e significativas nos locais dedicados à iconografia de ligação do defunto com a Terra.
Começaremos, no entanto, por examinar a sua representação nas tampas, viradas para o Celeste, descendo depois até às secções orientadas para o olhar humano. Para além dos elementos presentes nos túmulos propriamente ditos, também iremos considerar duas outras manifestações a eles associados, ou seja, muito sumariamente, um arcossólio onde se encontram representados dois ginetes, e uma lâmina de bronze que assinala o sepulcro de Estêvão Vasques Pimentel, na capela de Nossa Senhora do Rosário do Mosteiro de Leça do Balio, sendo esta placa funerária a metálica que chegou aos nossos dias no Entre-Douro-e-Minho, embora se saiba que outras existiram na região, tendo-se centrado o seu maior núcleo, hoje desaparecido, na Sé do Porto onde se encontravam, pelo menos, cinco exemplares.
No entanto, estes dois autores discordam quanto ao facto de ela poder ou não constituir um ensaio ou protótipo de jacentes, perfilhando Manuel Luís Real a primeira hipótese, enquanto Mário Jorge Barroca defende a segunda, declarando estarmos perante uma manifestação independente desse tipo de pesquisas, e acentua que nela se manifesta uma negação consciente de volumetria, no sentido de negar a tridimensionalidade. Este último autor considera, então, a tampa como obra de um escultor que se deslocou da zona de Coimbra para o Norte do país, e propõe a hipótese da figuração do abade se ter inspirado nas ilustrações do Apocalipse do Lorvão. Vejamos alguns aspectos relativos à simbologia da serpente. Na cultura cristã, ela apresenta uma conotação dupla e oposta. Embora geralmente se apresente como uma figuração do mal, também pode, igualmente, remeter para um simbolismo cristológico, como é o caso da sua representação nos báculos. A esse respeito, Louis Charbonneau-Lassay, após referir a serpente como símbolo de Cristo, sublinha como durante la segunda parte de la Edad Media, sobre todo del siglo XI al XIV, hay numerosos báculos de obispos e abades que terminan en una voluta en cuyo extremo hay una cabeza de serpiente. Por seu lado, Gerd Heinz-Mohr considera que formas e figuras de serpentes em cajados lembram o aspecto positivo da serpente de bronze, o símbolo de Cristo». In Pedro Chambel, Marcas do Quotidiano nos Monumentos Funerários. A Representação de Animais na Tumulária Medieval do Entre-Douro-e-Minho, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 1, N º 1, 2005, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT