segunda-feira, 24 de julho de 2017

Marcas do Quotidiano nos Monumentos Funerários. A Representação de Animais na Tumulária Medieval do Entre-Douro-e-Minho. Pedro Chambel. «Ora, no respectivo jacente, o cavaleiro apresenta-se em vestes civis, sendo visíveis as suas esporas e uma espada onde figura o respectivo brasão».

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Tanto a decoração como a epígrafe, para além de dignificarem e individualizarem os monumentos funerários, também promoviam a preservação da memória linhagística, segundo o princípio de que a recordação do passado era uma condição de legitimação do presente. Por outro lado, dados os interesses patrimoniais detidos pela fidalguia nos mosteiros onde os seus familiares se encontravam sepultados, o registo identificativo dos túmulos servia para reiterar junto da comunidade monástica os direitos que sobre ela exercia o grupo familiar do defunto, ao mesmo tempo que a existência nos mosteiros patronais de um panteão linhagístico, originava uma promoção prestigiante para os membros da respectiva congregação monástica, ao mesmo tempo que trazia consigo doações testamentárias que não eram de desprezar, A inscrição dos brasões dos falecidos nos monumentos funerários constituía, igualmente, um sinal eficaz da personalização dos monumentos funerários, prolongando-se a sua função identificatória até aos dias de hoje. Na verdade, vários foram os túmulos que puderam ser identificados devidos aos escudos-de-armas nele ostentados. Neste sentido, Augusto Ferreira Amaral afirma que as primeiras manifestações de brasões tumulares em Portugal surgiram em meados do século XIII, destacando, entre os primeiros exemplares, os túmulos de Paio Guterres Cunha, hoje desaparecido, que se encontrava na galilé da igreja de S. Salvador do Souto e o de Tibúrcio que se encontrava na Sé Velha de Coimbra.
De uma forma geral, a codificação heráldica não só individualizava o possuidor das armas, como o filiava na família portadora do escudo-de-armas, constituindo, assim, uma forma de integração linhagística. Um exemplo particularmente esclarecedor, a que nos referiremos mais tarde, é o túmulo quatrocentista de Lopo Dias Azevedo, nele surgindo um brasão onde a águia, o símbolo heráldico dos Azevedos, figura ao centro, enquanto na bordadura se representam leões, os animais representativos do escudo-de-armas da família dos Coelhos, de onde era originária a mãe do defunto. Ora, significativamente, foi esta representação heráldica que permitiu a moderna identificação do nobre tumulado. Torna-se, assim, patente como os brasões eficazmente aliam a função identificatória do indivíduo sepultado à da sua integração num determinado grupo linhagístico. No caso do Entre-Douro-e-Minho, a presença de brasões remonta à segunda metade do século XIII, começando-se a detectar a partir dos finais do século XIV, a presença de timbres coroando os brasões.
Porém, a forma mais explícita de personalização dos túmulos foi o jacente, sendo a partir dele que se expressa, mais exemplarmente, o propósito de “cunhar” o túmulo com uma explícita referência ao defunto. Na verdade o jacente procura fornecer uma representação física do morto. Segundo Mário Jorge Barroca, ele constitui uma manifestação essencialmente aristocrática e masculina, resultando da importação de uma moda estrangeira. Ora, se o primeiro jacente conhecido em Portugal se encontra em Alcobaça e remonta aos finais do século XIII, nele se representando dona Urraca, a mulher de Afonso II, no nosso país, ele apenas se institui como uma manifestação típica durante o século XIV, altura em que se assiste a uma verdadeira explosão na criação deste tipo de monumento funerário, o que se verifica logo na primeira metade do século. No Entre-Douro-e-Minho, o mais antigo jacente conhecido é o de Rodrigo Sanches, uma obra efectuada por escultores conimbricenses em meados do século XIII.
O jacente apresenta uma característica de primordial interesse a nível simbólico, dada a representação escultória do defunto se encontrar na tampa do túmulo, ou seja, virado para o Céu, para o Eterno. Assim, se as representações figurativas nos laterais do túmulo surgem numa posição que permite aos vivos a sua leitura e descodificação, o jacente, colocado em cima do túmulo, oferece uma figuração orientada para o Celeste. A representação do jacente, tanto comporta uma figuração destinada à visão da Corte Celestial, como procura sugerir o momento da preparação do defunto para o julgamento perante as potências divinas, para quem apela. Como exemplo desta topografia simbólica do túmulo, registamos, no Entre-Douro-e-Minho, o monumento funerário de Álvaro Gonçalves Freitas, um fidalgo que foi escudeiro, desembargador e vedor da fazenda de João I e que faleceu entre os anos de 1418 e 1420. No seu túmulo, situado na capela de S. Brás, hoje integrada no Museu Alberto Sampaio em Guimarães, encontram-se duas representações identificatórias. No jacente, fez-se figurar ostentando o hábito de franciscano (Isabel Castro Pina salienta o facto dos membros da nobreza, nos séculos XIV e XV, elegerem, maioritariamente, os conventos mendicantes para neles instalarem as suas sepulturas, como se lhes, franciscanos e dominicanos, estivesse atribuído um papel especial na intercessão pelos defuntos). No lateral maior do arcaz encontram-se dois brasões. Assim, se para o mundo terreno dos vivos, o nobre se identifica pela sua filiação linhagística e respectiva posição social, perante Deus surge despojado das suas funções terrenas, optando por se representar de forma a sugerir uma ligação pessoal e íntima com o divino, aqui simbolizada pelo hábito franciscano. Tendo ou não sido por ela guiado durante a sua vida, escolheu uma imagem de devoção perante Deus no momento em que se preparou para a morte. No entanto, conhecemos outros desígnios para as representações utilizadas noutros jacentes. Referimo-nos, por exemplo, a um sarcófago dos finais do século XIII, que se encontra na igreja do antigo Mosteiro de Pombeiro. Num dos seus laterais vê-se um cavaleiro na sua montada, estando em posição de combate e com a lança em riste, associando-se a tal figuração o seu escudo-de-armas. Ora, no respectivo jacente, o cavaleiro apresenta-se em vestes civis, sendo visíveis as suas esporas e uma espada onde figura o respectivo brasão». In Pedro Chambel, Marcas do Quotidiano nos Monumentos Funerários. A Representação de Animais na Tumulária Medieval do Entre-Douro-e-Minho, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 1, N º 1, 2005, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT