quinta-feira, 20 de julho de 2017

Madre Paula. Patrícia Muller. «Vou mostrar-te onde te podes refrescar e trocar de roupa. O hábito que vais usar é antigo. Não temos dinheiro para um novo»

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«(…) Não sabia que recebíamos mendigas no convento, abadessa. Mariana Castilho fingiu não ter ouvido a indelicadeza de Madalena Máxima Miranda, uma monja que muito tinha pago ao entrar para Odivelas. Com um gato persa ao colo, acariciava o pêlo do bicho como se fosse o peito de um amante. Interroguei-me se tinha fugido de um casamento combinado com outro fidalgo de igual importância; se a maternidade a enojava; se a humilhação de uma traição masculina, prática comum, a aterrorizava; se a ideia das obrigações matrimoniais a repugnava. Saberia ela dançar? Gostaria do cheiro de homem? Também não entendo, abadessa. Já não basta uma irmã pobre?
Carolina Augusta era da mesma laia: birrenta, insegura e muito invejosa. Eu era demasiado escura, alta e forte, demasiado do povo, sem dinheiro ou nome, Todas me olhavam como uma aberração. A Paula vai conhecer a sua cela. A sua irmã pode levá-la. Ficarão próximas uma da outra. A Luz mantinha-se de cabeça baixa. Tão humilhada e pequena, a minha irmã mais velha. Não era assim quando morávamos juntas. Percebi exactamente o que se passava naquele convento. Fechei os punhos, preparando-me para a guerra. A minha irmã pousou suavemente a mão no meu ombro. Vamos, querida. Fiz menção de ignorar o pedido. Eu levo-te. Que se transformou numa súplica. A Luz rejeitava o confronto. Obedeci, contrariada. Fi-lo por lealdade ao sangue, no convento há anos, domesticada como o gato. Aqui as regras não são diferentes das regras lá de fora, Paula. Fidalgas são mais gente do que nós. Pensava que éramos todas monjas, iguais aos olhos de Deus. Aos olhos de Deus somos todos iguais. Aqui dentro, continuamos todas diferentes.
Quando cheguei à minha cela vi o que me esperava diante da janela sem esperança: uma cama dentro de grades, como numa capoeira, um altar carunchoso, um armário sem uma perna. Mas o que me deixou em alvoroço não foi a cela em si, foi ter passado por outras de porta aberta e ter visto o luxo que ali imperava. Veludos e madeiras, ouro e prata, espelhos e vidros. Jurei a mim mesma que um dia, custasse o que custasse, haveria de ter uma cela infinitamente mais luxuosa do que qualquer uma daquelas. E não era porque estivesse habituada ao luxo e ao conforto. Era apenas porque a ideia de inferioridade nunca me assentou.
Vou mostrar-te onde te podes refrescar e trocar de roupa. O hábito que vais usar é antigo. Não temos dinheiro para um novo. Este que estou a usar foi-me dado por... O tempo em que a Luz se deliciava com negras e homens atrás de negras, numa sensualidade rebelde, tinha passado. Tinha sido esmagado pelo convento. Éramos felizes antes. Voltei do banho, embrulhada num manto envelhecido. Entrei na cela e, de cima da cama, tinham desaparecido as roupas. Procurei por todo o lado, o manto teimava em escorregar até que, com um puxão, alguém mo retirou pelas costas. Apenas tive tempo de me virar e vislumbrar a cauda do gato ao colo de quem corria. As roupas estão no claustro da Moura, noviça. Risos vindos do corredor. Comecei a tiritar. Preparei-me para gritar. A sua irmã não a ouve. Mandámo-la para o jardim, bem longe. A voz não acompanhava uma cara, mas eu sabia a quem pertencia». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT