segunda-feira, 3 de julho de 2017

Madre Paula. Patrícia Muller. «Caminhei pela portaria como uma condenada à morte, passei pelo átrio da Rainha Santa Isabel e penetrei na cozinha»

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«(…) A história sempre me pareceu peculiar. Um urso ataca um cavaleiro veloz e deixa-se cair sobre ele, como um arco total. Mas lendas são lendas e a entrada da quinta, numa estreita viela que desemboca no largo, pertence ao tipo de irrealidade da qual são feitas as grandes histórias. Passa despercebida a muitos viajantes, talvez tenha sido assim feita propositadamente. O portão é em ferro. Hoje, um portão ajoelhado aos pés do tempo. No dia em que eu entrei, um urso em ferro a abater-se sobre mim, escuro e tenebroso, tão grande como a minha casa ou o Palácio Real, que arfava pesadamente sobre o meu pescoço, arrepiando-me com uma intensidade quase prazerosa. Era altaneiro, metálico, ruim. Era uma pedra que não estava no meu caminho mas em que eu tropeçava. Eu não era o monarca Dinis, era o urso morto, no trilho de uma existência abatida. Senti-lhe o cheiro quando lhe toquei, um emaranhado de metal, quando crispei a mão pela parte de fora para não desmaiar. Agitei a grade na ínfima esperança de a sentir frágil e facilmente destrutível. Se assim fosse, poderia fugir quando quisesse, regressar ao mundo que conhecia, à vida que era a minha. Senti-me uma prisioneira do lado de fora das grades, eu própria fora da minha carne a vaguear num pequeno campo verde fugidio. Vi-me de lado, de trás, senti pena da rapariga que ali estava.
Pai, se tivéssemos ouro, eu poderia largar o portão? Não entendeu a pergunta. Continuei a abanar a grade cada vez com mais força e violência; quando as mãos não eram suficientes usei as pernas e pontapeei-o até me doerem os pés e, no meio da revolta, fiquei pendurada no portão como um pequeno animal enredado na liana das terras do rei que eu nunca iria conhecer. Não quero morrer! O pai deixou-me ali ficar até as mãos serem incapazes de qualquer aperto. Olhei e vi que estavam negras. Passou-me pela ideia que o negrume pudesse alastrar-se a todo o corpo como uma doença, tomar conta de mim, gelar-me o coração e o corpo e incorporar-me no portão. De certa forma, foi isso que aconteceu. Colei-me ao metal da entrada de Odivelas. E ali permaneci o resto da minha vida.
O mosteiro não me amedrontou. Era de uma alvura angulosa, simples. Algumas pedras estavam marcadas com o símbolo dos pedreiros que as haviam assentado, para poderem reclamar o pagamento certo. Depois do urso e da iminência da morte, certamente que o rei deu ordens para não regatear preços de construção. O alpendre que dá entrada ao mosteiro tem a forma de um meio quadrado, duas alas cujas paredes são forradas a azulejos azuis e brancos, com imagens de S. Bernardo, santo padroeiro. Notei o Escudo da minha ordem, a de Cister, com as quinas à direita e os símbolos à esquerda, numa das cornijas da alpendrada. Era belo. Perto da portaria, a roda onde comerciantes deixavam os produtos que nos alimentavam. O engenho girava e, no interior, era a irmã-porteira quem retirava os bens. Foi ela quem nos abriu a porta. A ironia do destino: foi ela quem passou noites insones por causa das visitas do rei à minha cela. Mais ninguém tinha autorização para abrir o mosteiro, ela era a guardiã e a chave para o mundo exterior.
Caminhei pela portaria como uma condenada à morte, passei pelo átrio da Rainha Santa Isabel e penetrei na cozinha, onde as irmãs conversas, monjas pobres como eu, se afadigavam no preparo das refeições. A cozinha era alegre, com azulejos na chaminé representando o rapto de Proserpina. O cheiro era indescritivelmente consolador, uma mistura de açúcar e canela, fruta fresca, carne a assar num espeto, pão a cozer num forno, marmelada a ser remexida numa enorme panela e uma maravilha à qual eu não estava habituada: uma pia em pedra de onde brotava água cristalina num barulho crepitante. Nas paredes, imagens de passarinhos, sereias, peixes, mulheres, uma profusão alegre que me fez sentir acompanhada. Naquela cozinha, eu nunca me sentiria sozinha. Gostas da cozinha, Paula?» In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT