quinta-feira, 13 de julho de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «A casa onde vivia Elvira Gualter não era longe, três esquinas, quatro ruelas e encontrou-se à porta. Nenhuma luz, nenhuma voz, nenhum soldado»

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A Paz de Zamora. Coimbra 1143
«A lealdade férrea de uma mulher resiste a quase tudo: às derrotas, às conspirações dos conselheiros e às más vontades do seu amado. Só não resiste à presença de uma rival. Há anos que Chamoa suportava as intrigas da corte, os projectos de casamento de Afonso Henriques com uma princesa estrangeira, os amuos e as frustrações do seu príncipe. A quase tudo reagira bem e até a querela que provocara em Lisboa fora ultrapassada. Valia a pena, Afonso Henriques amava-a e vencera as provações com ânimo, mesmo numa época de abatimento.
Chamoa acabara a sexta gravidez esgotada de mais uma gestação. Embora já tivessem passado seis meses sobre o nascimento de Pedro Afonso, seu segundo filho de Afonso Henriques, a recuperação da saúde fora lenta. Por isso, mandara vir da Maia uma antiga criada do seu primeiro marido, dona Justa, mulher seca de carnes, mas muito carinhosa com as crianças, que já cuidara dos seus outros filhos. A experiente cinquentenária permitiu-lhe tempo livre, que usou para se recompor. No entanto, não era mulher plena, não desejava o prazer. Afonso Henriques possuiu-a duas vezes, mas o bom entendimento carnal parecia congelado.
O príncipe de Portugal aceitou a fragilidade dela, mas, em finais de Julho, uma novidade perturbou-a. Elvira Gualter, mãe das duas primeiras filhas de Afonso Henriques, fora outra vez chamada por este a Coimbra, alegadamente porque desejava que as meninas convivessem com Fernando Afonso, quase com três anos, e com o recém-nascido Pedro Afonso. Saber da chegada da outra fez nascer na alma de Chamoa uma vertigem desconfiada. Os homens são tolos, pensam que enganam as mulheres, mas elas tudo pressentem. Carregada de dúvidas, a minha cunhada tentou vigiá-lo, mas adormecia vencida pelo cansaço, acordando alarmada na alta noite, sem ele ao lado na cama. Por onde andava? Sempre que o questionava, Afonso Henriques era vago: fora caçar, comer, falar com os soldados. Pareciam verdades, mas também falsidades, como se ele fizesse tudo isso e mais alguma coisa.
Quando certa noite acordou, não o vendo entre as mantas e as almocelas, decidiu procurá-lo. Era Verão, bastou-lhe cobrir-se com um manto leve e desceu para o piso inferior. Aflita, não o encontrou nos quartos onde dormiam os filhos, junto a dona Justa. Quando lhe confessou os receios, ela apenas lhe disse: ide dormir, os homens são como são. A minha cunhada fechou a porta do aposento a arder por dentro, como se um diabo malicioso lhe tivesse ampliado os terrores. A ama já no passado lhe dissera coisa igual, a propósito de Paio Soares. Mas ela não amava o primeiro marido, esse casamento fora-lhe imposto e a infidelidade dele não a fizera sofrer. Afonso Henriques não a podia trair, não depois do que ela abdicara! Enervada, saiu para o pátio e caminhou pela almedina. Estava urna noite quente, o luar de Agosto dava-lhe no rosto e sentia-se impelida por uma força superior, que já decidira o rumo dos pés.
A casa onde vivia Elvira Gualter não era longe, três esquinas, quatro ruelas e encontrou-se à porta. Nenhuma luz, nenhuma voz, nenhum soldado. Forçou a porta e entrou, de coração apertado. Conhecia bem aquela toca, era uma habitação propensa às tropelias. Uns anos antes, ela mesmo havia sido descoberta ali, deitada com Mem e Zarda, provocando uma forte desilusão no homem que agora procurava. Por isso, hesitou, à porta. As duas filhas de Afonso Henriques e de Elvira Gualter dormiam no chão da sala, deitadas em esteiras. Eram bonitas, altas e loiras como a mãe. Engoliu em seco e por instantes quis voltar para trás e esquecer. Mas não foi capaz e avançou. Ouviu gemidos no quarto e o coração bateu-lhe mais depressa. Aproximou-se da porta entreaberta, espreitou e viu dois corpos enormes, nus e abraçados. A normanda era muito alta e Afonso Henriques, um gigante, possuía-a com um fervor silencioso». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT