segunda-feira, 10 de julho de 2017

Assim foi Auschwitz Primo Levi. «A viagem de Fossoli para Auschwitz durou exactamente quatro dias; e foi muito penosa, sobretudo por causa do frio, que era tão intenso…»

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«Graças à documentação fotográfica e às declarações agora numerosas fornecidas por ex-internos dos vários Campos de concentração criados pelos alemães para a aniquilação dos judeus da Europa, talvez já não exista ninguém que ainda ignore o que foram esses lugares de extermínio e as torpezas que lá foram praticadas. No entanto, com a finalidade de dar a conhecer melhor os horrores, dos quais nós próprios também fomos testemunhas e muitas vezes vítimas durante o período de um ano, acreditamos ser útil trazer a público em Itália um relatório que apresentámos ao governo da U.R.S.S., por solicitação do Comando Russo do Campo de Concentração de Kattowitz para italianos ex-prisioneiros. Foi neste Campo que também nós ficámos abrigados após a nossa libertação, efectuada pelo Exército Vermelho em finais de Janeiro de 1945. Acrescentamos agora a essa exposição algumas informações de ordem geral, pois o nosso relatório da altura devia restringir-se exclusivamente ao funcionamento dos serviços sanitários do Campo de Monowitz. O mesmo governo de Moscovo solicitou relatórios análogos a todos os médicos de qualquer nacionalidade que, vindos de outros campos, também tivessem sido libertados.
Partimos do Campo de concentração de Fossoli di Carpi (Módena) em 22 de Fevereiro de 1944, num comboio com 650 Judeus de ambos os sexos e de todas as idades. O mais velho passava dos oitenta anos, o mais novo era um bebé de três meses. Muitos estavam doentes, alguns gravemente: um velho de setenta anos, que tivera uma hemorragia cerebral poucos dias antes da partida, foi igualmente embarcado e morreu durante a viagem.
O comboio era composto apenas por vagões de transporte de gado, fechados pelo lado de fora; em cada vagão, foram amontoadas mais de cinquenta pessoas, a maior parte das quais levava consigo todas as malas que conseguia, porque um primeiro sargento alemão do Campo de Fossoli tinha-nos sugerido, com ar de quem dava um conselho desinteressado e afectuoso, que nos provêssemos de muitas roupas pesadas, camisolas de malha, cobertores, peliças, porque seríamos levados para regiões com um clima mais rigoroso do que o nosso. E acrescentara, com um sorrisinho benévolo e uma piscadela de olho irónica, que, se alguém tivesse dinheiro ou jóias escondidas, faria bem em levá-los também, pois lá seriam certamente úteis. A maioria dos que partiam mordeu o isco, seguindo um conselho que escondia uma armadilha grosseira; outros, pouquíssimos, preferiram confiar os seus bens a algum particular com livre acesso ao Campo; outros, por fim, que no acto da detenção não tinham tido tempo de providenciar mudas de roupa, partiram apenas com o que vestiam.
A viagem de Fossoli para Auschwitz durou exactamente quatro dias; e foi muito penosa, sobretudo por causa do frio, que era tão intenso, especialmente nas horas nocturnas, que de manhã as tubagens de metal que percorriam o interior dos vagões estavam cobertas de gelo, devido ao vapor da respiração que se condensava sobre elas. Outro tormento era a sede, que só podia ser saciada com a neve recolhida durante a única paragem diária, quando o comboio se detinha em campo aberto e os viajantes eram autorizados a descer dos vagões, sob a rigorosíssima vigilância de inúmeros soldados, prontos, com a metralhadora sempre apontada, a abrir fogo contra quem quer que fizesse menção de se afastar do comboio.
Era durante essas curtas paragens que se procedia, vagão a vagão, à distribuição dos alimentos: pão, doce e queijo; nunca água ou qualquer outro líquido. As possibilidades de dormir eram reduzidas ao mínimo, pois a quantidade de malas e trouxas que se amontoavam no chão não permitia que ninguém se ajeitasse numa posição cómoda e propícia ao descanso; os viajantes deviam, portanto, contentar-se em ficar acocorados da maneira que lhes custasse menos num espaço muito reduzido. O soalho dos vagões estava sempre molhado e não era fornecido sequer um pouco de palha para o cobrir». In Primo Levi, Assim foi Auschwitz, 2015, Penguin Randon House Grupo Editorial, Objectiva, 2015, ISBN 978-989-877-569-6.

Cortesia de Objectiva/JDACT