quarta-feira, 12 de julho de 2017

Assim foi Auschwitz. Primo Levi. «As repetidas desinfecções deterioravam os tecidos, acabando com a sua resistência. Todo este material resultava das roupas de pior qualidade retiradas aos passageiros dos vários comboios»

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«(…) Assim que chegou ao Campo, o grupo de 95 homens foi levado para o pavilhão de desinfecção, onde todos foram prontamente despidos e, depois, submetidos a uma completa e cuidadosa depilação: cabelos, barbas e tudo o resto caíram rapidamente sob tesouras, navalhas e máquinas. A seguir, os homens foram colocados na sala dos chuveiros e ali ficaram trancados até à manhã seguinte. Cansados, famintos, com sede e sono, atónitos com o que tinham visto e inquietos pelo seu destino imediato, mas, acima de tudo, inquietos pela sorte dos entes queridos de quem tinham sido brusca e brutalmente separados poucas horas antes, com o espírito atormentado por obscuros e trágicos pressentimentos, eles tiveram de passar a noite inteira em pé, com os pés na água que pingava das tubagens e corria pelo chão. Finalmente, por volta das 6 horas da manhã seguinte, foram submetidos a uma fricção geral com uma solução de lisol e depois a um duche quente; de seguida, foram-lhes entregues os uniformes do Campo e, para os vestir, foram conduzidos a outra sala, na qual tiveram de entrar pelo lado de fora do pavilhão, saindo nus para a neve, com o corpo ainda molhado do duche recente.
O uniforme dos prisioneiros de Monowitz durante o Inverno era composto por um casaco, um par de calças, um boné e um sobretudo de pano às riscas; uma camisa, um par de cuecas de algodão, um par de meias; um pulôver; um par de sapatos com sola de madeira. Muitas meias e muitas cuecas tinham sido visivelmente feitas a partir de alguns thaled, o manto sagrado com o qual os Judeus se costumam cobrir durante as orações, encontrados nas malas de alguns deportados e utilizados para aquela finalidade em sinal de desprezo. Mal chegava o mês de Abril, quando o frio, embora mais brando, ainda não desaparecera, as roupas de pano grosso e os pulôveres eram retirados, e as calças e o casaco eram substituídos por peças análogas de algodão, também às riscas; só em finais de Outubro voltavam a ser distribuídas roupas de Inverno.
No entanto, isso não aconteceu no Outono de 44, porque as roupas e os casacos de pano grosso tinham chegado ao limite extremo de uso, de forma que os prisioneiros tiveram de enfrentar o Inverno de 44-45 vestindo algodão, como nos meses de Verão; só uma pequena minoria recebeu uma leve gabardina impermeável ou um pulôver. Era rigorosamente proibido possuir mudas de roupa ou de peças íntimas, de forma que era quase impossível lavar camisas ou cuecas: essas peças eram trocadas, de acordo com as autoridades, a cada 30-40-50 dias, segundo a disponibilidade e sem possibilidade de escolha; as peças não vinham lavadas, eram apenas desinfectadas a vapor, pois não havia lavandaria no Campo. Em geral, eram cuecas curtas de algodão e camisas, sempre de pano, frequentemente sem mangas, sempre de aspecto repugnante devido a todo o tipo de manchas, com frequência reduzidas a farrapos; nalgumas ocasiões, em vez disso, recebia-se a camisa ou as calças de um pijama ou mesmo alguma peça de roupa feminina.
As repetidas desinfecções deterioravam os tecidos, acabando com a sua resistência. Todo este material resultava das roupas de pior qualidade retiradas aos passageiros dos vários comboios que, corno se sabe, chegavam continuamente ao Centro de, Auschwitz provenientes de todas as partes da Europa. Eram distribuídos sobretudos, casacos e calças, tanto de Verão como de Inverno, em péssimas condições, cheios de remendos e impregnados de sujidade (barro, graxa, tinta). Os prisioneiros tinham de tratar pessoalmente de os arranjar sem receberem linhas ou agulhas para isso. Era extremamente difícil conseguir trocá-los, o que só acontecia quando qualquer tentativa de arranjo fosse de todo impossível. As meias nunca eram trocadas, e a sua recuperação ficava entregue à iniciativa de cada um. Era proibido possuir lenços de assoar ou qualquer outro pedaço de tecido.
Os sapatos eram feitos numa oficina própria que existia no Campo; as solas de madeira eram pregadas em chapas de couro ou de couro sintético ou de pano emborrachado provenientes do calçado de pior qualidade retirado dos comboios que chegavam. Quando estavam em bom estado, constituíam uma defesa razoável contra o frio e a humidade, mas eram absolutamente inadequados para as caminhadas, mesmo curtas, e causavam escoriações na sola dos pés. Podia considerar-se afortunado aquele que tivesse sapatos emparelhados e do tamanho adequado. Quando se estragavam, eram consertados infinitas vezes, para além de qualquer limite razoável, de forma que era raríssimo ver calçado novo, e aquele que normalmente era distribuído não durava mais de uma semana. Não eram distribuídos atacadores, cada qual os substituía como podia por pedaços de papel retorcido ou por fio eléctrico, quando era possível encontrar algum». In Primo Levi, Assim foi Auschwitz, 2015, Penguin Randon House Grupo Editorial, Objectiva, 2015, ISBN 978-989-877-569-6.


Cortesia de Objectiva/JDACT