quarta-feira, 26 de julho de 2017

A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa. Ana Rodrigues Oliveira. «… confessar as suas faltas, deveria ser considerado inocente e alheio à intenção de pecar, pelo menos enquanto não atingisse a segunda fase da sua primeira idade».

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Baseando-se no conhecimento de todas estas formulações, Philippe Ariès acabou por as generalizar. Se a duração da infância era reduzida ao período de maior fragilidade, em que a cria humana não se bastava a si própria na Idade Média passar-se-ia directamente de criança muito pequena a adulto jovem, sem passar pelas várias etapas da juventude. Ora, tais conclusões revelam-se, hoje, demasiado radicais. Com efeito, mesmo a nível das representações, assistiu-se, a partir da Baixa Idade Média, a uma participada problematização das características e especificidades da primeira das idades do homem, desde a questionação do momento exacto dos seus começos, até à elaboração de complexas considerações normativas relativamente ao respectivo enquadramento social. Ao mesmo tempo, aliás, que as fontes documentais começam a permitir a revelação da existência de um vocabulário consciente e atento às realidades do crescimento infantil, distinguindo e considerando diferentes níveis etários na infância e na puberdade. Antes de mais, a criança começou a suscitar um alargado debate sobre o exacto momento da sua entrada na vida. Para a maioria da população leiga, o início da infância coincidia com a hora do parto, constituindo o grito da criança ao nascer a mais forte manifestação da afirmação pública de um novo ser. No grupo dos letrados, porém, recuava-se à altura em que o feto teria recebido a alma, variando, contudo, o cômputo dos dias em que essa ocorrência se verificaria. Entre as seis e as sete semanas para os que a situavam na fase em que o feto adquiria os respectivos membros sem distinção de sexo e, para os seguidores da concepção aristotélica, aos quarenta dias para o rapaz e aos noventa para a rapariga.
Em 1234, o papa Gregório IX adoptou como posição oficial da Igreja a segunda das teses, passando então os textos normativos eclesiásticos a considerar que a criança não só começava a sua infância antes do nascimento, como sobre ela já penderiam determinadas regras e disposições. Nas actas dos sínodos diocesanos, nos penitenciais e nos livros de milagres portugueses, ou redigidos em língua lusa, era essa a situação dos nascituros, referidos como fruytos, ou seja, os fetos que já se encontram concebidos como crianças, contando-se, por exemplo, entre os milagres atribuídos a Nuno Álvares Pereira, terem sido agraciadas parturientes, quer com a criança morta no ventre quer com a criança atravessada com uma perna e um braço de fora ou ainda com complicados partos. Entretanto, os canonistas e os legistas multiplicavam as referências feitas às crianças na legislação produzida, passando estas a definir um grupo etário crescentemente abrangido por normas e procedimentos jurídicos diferentes dos aplicados aos rapazes e raparigas que, após a entrada na adolescentia, aos, respectivamente, catorze e doze anos de idade, passavam a estar quase sempre enquadrados pelo regime reservado aos adultos. Neste sentido, as regras e as práticas jurídicas acabam por reflectir e testemunhar a progressiva construção medieval de uma concepção de criança valorizada e diferenciada mesmo que, atendendo à reduzida esperança de vida desta época e às categorias mentais herdadas da Antiguidade, se confinasse aos anos correspondentes à infantia e à pueritia, não coincidindo assim, seja com a tendência moderna e contemporânea de nela também vir a incluir uma parte da adolescentia, seja com a actual consideração de uma meta etária comum aos rapazes e às raparigas para atingir a idade adulta. Abandonava-se, neste último caso, a concepção aristotélica, muito presente na cultura letrada masculina da Idade Média, de que a precocidade da mulher no que diz respeito à sua completa maturidade se deveria ao facto de que as leis da natureza finalizariam mais depressa o que era menos nobre, complexo ou subalterno.
Entre os juristas da Baixa Idade Média, foram, sobretudo, os canonistas quem mais precocemente se ocupou com o direito da criança, produzindo uma abundante legislação sobre as interdições e as protecções devidas à consideração da sua idade, a qual foi depois, em grande parte, adoptada e ampliada pelos civilistas. No seu conjunto, todo esse labor jurídico baseava-se na consideração de uma escala muito mais precisa das etapas de crescimento e maturidade a percorrer pelas crianças até atingirem a adolescentia, e, uma vez ultrapassadas as duas fases, uma semi-plena, terminada aos dezoito anos, e outra plena, chegarem à juventus, a idade em que, cerca dos vinte e cinco anos, entravam finalmente no mundo dos adultos e dos seus deveres e responsabilidades relativamente à sociedade e à crença. De facto, antes da adolescentia, tanto os canonistas como os teólogos começaram a defender a consideração de uma responsabilização individual mais branda e desculpabilizante, propondo, em primeiro lugar, que fosse progressivamente acentuada durante a pueritia, mais no decorrer de uma sua segunda metade, dos dez e meio até aos doze para as raparigas e catorze para os rapazes, do que numa primeira, iniciada aos sete anos, e, em segundo lugar, que na considerada primeira infantia, do nascimento até aos três ou cinco anos, fosse completamente ignorada, tendo em conta que o in-fans, mesmo que já falasse e pudesse confessar as suas faltas, deveria ser considerado inocente e alheio à intenção de pecar, pelo menos enquanto não atingisse a segunda fase da sua primeira idade». In Ana Rodrigues Oliveira, A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT