quarta-feira, 26 de julho de 2017

A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa. Ana Rodrigues Oliveira. «De facto, mesmo para alguns teólogos, a criança não deveria ser responsabilizada por actos praticados antes dos cinco anos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A consciência da existência de várias fases, idades ou estádios, que se sucedem ao longo da vida de cada indivíduo, encontra-se bem presente no discurso letrado ocidental, desde a Antiguidade clássica. Tal como então, também a Idade Média considerou a infantia como a primeira das idades de um conjunto que tendia a ser de seis, antecedendo a pueritia (dos seis aos catorze anos), a adolescentia (dos catorze aos vinte), a juventus (até aos quarenta), a senectus (até aos sessenta anos) e a senium (depois dos sessenta). De facto, tendo como base um esquema difundido através das Etimologias de Isidoro de Sevilha, sempre foi esta a formulação mais seguida nos tempos medievais.
No século XIII, por exemplo, esta divisão continuava a vigorar na nova e muito consultada enciclopédia de Bartolomeu, o Inglês, e, dois séculos mais tarde, já no âmbito da cultura letrada leiga e cortesã, ela também se encontra na base do repartimento das idades enunciadas por Duarte I no seu Leal Conselheiro, onde se volta a repetir ser a ifancia ataa VII annos, puericia ataa XIIII, ataa XXI adolacencia, mancebia ataa cincoenta, velhice ataa LXX, senium ataa LXXX. E dali, ataa fim da vida, ecrepidus.
Contudo, embora existisse um consenso entre os letrados medievais sobre a validade da consideração de seis etapas a percorrer na vida de qualquer indivíduo, assistiu-se, sobretudo a partir do século XIII, à formulação de propostas que ampliavam, reduziam ou complexificavam o esquema isidoriano das idades do homem, sem contudo alterar os seus aspectos essenciais. Algumas delas resultaram da tentativa de impor um ciclo de sete etapas, mais propício ao estabelecimento de relações simbólicas entre as sucessivas fases etárias e os planetas, os dias da semana, as idades do mundo ou os dons do Espírito Santo, acrescentando à fórmula das Etimologias uma nova idade terminal, senies, a alcançar depois dos setenta anos, ou subdividindo a primeira, conforme propôs, na década de sessenta do século XIII, Aldebrandino de Siena, para quem a infantia se reduzia até ao tempo do aparecimento dos primeiros dentes, sendo depois seguida, até aos sete anos, pela idade da dentum plantatura.
Paralelamente, começaram também a surgir propostas de vários pedagogos apontando para uma redução no cômputo das seis idades. Filipe de Novara, por exemplo, baseando-se nas tradições pitagórica e aristotélica, sugeria, em 1260, a consideração de quatro idades correspondentes às quatro estações do ano e aos quatro elementos da natureza. Neste caso, à infância, que decorreria até aos vinte anos e que se articularia com a Primavera e com a água, suceder-se-iam a juventude, até aos quarenta e sob o signo do Verão e do fogo, a média idade, conotada com o Outono e a terra, e, a partir dos sessenta anos, a velhice, a fase etária correspondente ao Inverno e ao ar. Mais sintético e global, Gil de Roma sugeria, em 1285, a simples consideração de uma juventude primaveril, seguida pela idade madura do Verão e finalizada pela velhice de um Outono-Inverno.
No seu conjunto, todas estas novas propostas acabavam por desvalorizar as idades extremas, remetendo os inícios da sequência, princípio, progressão, equilíbrio, declínio, para uma fase etária em que ainda não se tinham adquirido as capacidades vitais, e os seus finais para um tempo de decrepitude e de senilidade. Sendo assim, a infância e a velhice surgiam como idades imperfeitas, sobretudo por contraste com a fase que correspondia aos trinta anos, a idade em que Cristo começou a fazer milagres. De resto, tanto os textos dos médicos como dos pedagogos medievais insistiam em atribuir à infantia várias carências e debilidades que acentuavam, por sua vez, a ideia de uma imperfeição, aspecto que as Etimologias de Isidoro de Sevilha tinham contribuído para evidenciar, dado registarem para a infantia a etimologia de in-fans, ou seja, quem não sabe ainda falar ou articular palavras, porque, sem ter ainda desenvolvido os dentes, lhe faltava a faculdade da linguagem.
Para os médicos, ao seguir a teoria dos humores, a criança era um ser muito quente e muito húmido, explicando-se a fraqueza e a debilidade dos primeiros anos de vida por um desequilíbrio com o frio e o seco exteriores que só seria corrigido com o avanço dos anos. Para os pedagogos, por sua vez, a infantia caracterizava-se por uma genérica falta de maturidade, expressa na incapacidade de elaborar um discurso coerente antes dos cinco anos, mostrando-se, portanto, bastante cépticos sobre o início de um processo pedagógico de aprendizagem antes dessa idade. De facto, mesmo para alguns teólogos, a criança não deveria ser responsabilizada por actos praticados antes dos cinco anos, só devendo ser confessada e admitida à comunhão depois dos seus cinco sentidos corporais se encontrarem devidamente espiritualizados pelo conhecimento do significado simbólico dos cinco elementos associados à eucaristia, ou seja, a carne e o sangue de Cristo que se consubstanciavam no pão, no vinho e na água manipulados durante a missa». In Ana Rodrigues Oliveira, A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT