terça-feira, 27 de junho de 2017

Roma Antiga. A vida sexual. Géraldine Puccini-Delbey. «… a sociedade reside primeiro na união conjugal, e depois nas crianças…»

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O dever cívico do casamento
«(…) Não sabemos quais seriam os hábitos matrimoniais nos primeiros tempos de Roma. Este período, perdido nas brumas de um longínquo passado sem rasto escrito, só nos é acessível através do prisma de alguns mitos relatados por Tito Lívio no início da sua História de Roma. O relato mitológico do rapto das sabinas funciona como um dos mitos vitais da cidade. Os companheiros de Rómulo, instalados no Lácio, não têm mulheres. Ora, o futuro da cidade que estão a edificar depende da posteridade desses primeiros colonos. Precisam de mulheres para conceber. Porém, os povos vizinhos, nomeadamente os sabinos, opõem-se a dar as suas filhas em casamento àqueles aventureiros, que decidem então conseguir companheiras por meio de um estratagema e de violência. Rómulo convida os vizinhos para um espectáculo de jogos; os sabinos aceitam o convite e vão com as mulheres e os filhos. A um sinal previamente acordado, os romanos precipitam-se para raptar as jovens sabinas e, posteriormente, casar com elas. Este relato lendário oculta, talvez, factos verdadeiros. Os ataques maciços de aldeia em aldeia para conquistar mulheres não são desconhecidos nas sociedades primitivas, e é possível que os primeiros habitantes de Roma tenham recorrido a tais práticas.
Pode ser também uma lenda que perpetua apenas a lembrança de um rito muito antigo. Este relato foi alvo de múltiplas interpretações. Enquanto Plutarco indica que, na época de Rómulo, as práticas são estritamente endógamas no quadro gentilício, outros houve que viram nele um rito de exogamia. Georges Dumézil analisa-o como um mito funcional indo-europeu. Os sabinos e o seu rei Tácio representam a função de fecundidade, a terceira função social face às duas mais importantes, a função religiosa e a função bélica assumidas por Rómulo e pelos seus companheiros. A aliança entre Rómulo e Tácio dá origem à criação de uma sociedade completa onde estão reunidas as três funções indo-europeias. O casamento e a mulher que se torna mãe de família são o meio e o órgão da fecundidade regulamentada.
No século V a.C., a proibição do casamento entre patrícios e plebeus teria figurado em uma das XII Tábuas. O tribuno C. Canuleio reclama em440 a.C. para os plebeus o direito ao casamento com patrícios, provocando o protesto destes, que se escandalizam com a abolição de todas as distinções sociais. Porém, o tribuno leva a melhor; a Lei Canuleia, que autoriza os casamentos entre patrícios e plebeus, é votada. A vitória dá origem, no plano social, a um resultado muito importante: por meio dos casamentos mistos, a elite das famílias plebeias pode começar a aceder à direcção do Estado. Na época republicana, podem, portanto, recorrer à instituição cívica do casamento todos aqueles que são cidadãos, homens e mulheres adultos de condição livre, bastardos de mãe cidadã e, a partir do final da República, os antigos escravos libertos, que doravante podem casar-se legalmente com uma pessoa de nascimento livre, com a condição de não pertencer aos graus de parentesco proibidos. A lei é clara quanto a este ponto: os cidadãos romanos contraem matrimónio (conubium) com cidadãos romanos; com latinos e estrangeiros, se tal for permitido; com escravos não existe qualquer casamento (são o resumo de um manual atribuído a Ulpiano, compilado no final do século III ou no princípio do século IV da nossa era por um jurista desconhecido, a partir de obras de Ulpiano e, talvez, de outros juristas clássicos; ainda que de redacção tardia, estes Tituli apresentam a doutrina dos juristas e dos administradores do final do século II e do principio do século III d.C., assim como a sua visão retrospectiva do sistema legal romano). A partir do principado de Augusto, este quadro geral sofre algumas proibições que dizem respeito aos senadores, aos seus filhos e aos seus netos, os quais não podem casar-se com libertas, actrizes ou prostitutas. Pelo contrário, um cavaleiro pode casar com uma liberta. O casamento com uma prostituta continua a ser proibido a todos os cidadãos de condição livre. Um governador de província apenas pode casar com uma habitante da província por si administrada após o fim do seu mandato. Todas as classes sociais devem evitar a disparidade de nascimento entre marido e mulher.

Um fundamento filosófico
Cícero, na sua obra filosófica Dos Deveres, concordando com os peripatéticos e com os estóicos, considera o casal como o grupo animal original do qual derivam todos os grupos maiores: a sociedade reside primeiro na união conjugal, e depois nas crianças. O casal e os seus filhos formam a unidade de base que serve para fazer nascer a cidade e o Estado. O casamento é, por assim dizer, o viveiro do Estado, e o seu objectivo é gerar crianças, liberorum creandorum causa, de acordo com a fórmula ritual. No princípio de De inuentione, Cícero, interrogando-se acerca da origem da eloquência, descreve o estado natural antes da civilização, quando os homens erravam ao acaso pelos campos à maneira dos animais e quando ninguém vira ainda casamentos legítimos: estes são um critério decisivo de civilização, e Cícero liga todo o desenvolvimento social à união dos dois sexos no seio da instituição do casamento». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago Marques, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.

Cortesia de TGrafia/JDACT