domingo, 18 de junho de 2017

O Fardo da Nobreza. Donna Leon. «Litfin acompanhou o movimento dos seus lábios enquanto ele olhava para o osso. Sem dar tempo para que respondesse, Bortot passou o osso para ele»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Então os homens saíram das sombras e o doutor teve um momento alucinatório ao perceber o contraste dos uniformes pretos contra o inocente pano de fundo rosa da macieira em flor. As botas lustradas marchavam sobre um carpete de pétalas recém-caídas enquanto se aproximavam dele. O que o senhor faz por aqui?, indagou o primeiro. Quem é o senhor?, perguntou o outro, mantendo o mesmo tom raivoso. Num italiano desajeitado em virtude do medo, ele começou: sou o doutor Litfin. Sou o..., e fez uma pausa em busca do termo mais adequado. Sou o padrone daqui. Os carabinieri tinham sido informados de que o novo proprietário era um alemão, e o sotaque parecia real o bastante, de modo que eles abaixaram as armas, mas mantiveram o dedo perto do gatilho. Litfin tomou o gesto como uma permissão para abaixar as mãos, o que fez bem devagar. Por ser alemão, sabia que as armas seriam sempre superiores a qualquer apelo a direitos civis, daí ter esperado que se aproximassem dele, o que não o impediu de voltar momentaneamente sua atenção para os três homens que permaneciam no terreno recém-arado, agora tão imóveis quanto ele, atentos aos carabinieri que se aproximavam e a ele próprio. Os dois policiais, de repente inseguros frente à pessoa capaz de arcar com as reformas da casa e do terreno, à vista de todos, aproximaram-se do dr. Litfin e à medida que o faziam o equilíbrio do poder alterava-se. Consciente disso, Litfin aproveitou a oportunidade.
O que significa tudo isso?, perguntou, apontando para o terreno e deixando que os policiais concluíssem por si sós se ele estava referindo-se ao relvado arruinado ou aos três homens que permaneciam do outro lado. Tem um cadáver no seu terreno, respondeu o primeiro polícia. Sim, eu sei disso, mas o que é toda essa..., ele buscou o termo apropriado, mas só conseguiu emitir um distruzione. As marcas do trilho dos pneus pareciam aprofundar-se enquanto os três homens as avaliavam, até que finalmente um dos polícias disse: fomos obrigados a atravessar o terreno. Embora fosse uma mentira descarada, Litfin optou por ignorá-la. Voltou as costas aos polícias e começou a caminhar em direcção aos outros três homens tão rápido que ninguém tentou detê-lo. Chegando ao final da primeira vala, bastante profunda, perguntou ao homem que parecia estar no comando: o que é isso? O senhor é o doutor Litfin?, perguntou o outro médico, que já tinha sido informado sobre o alemão, sobre quanto havia pago pela casa e quanto havia gasto até então com as reformas. Litfin confirmou e, como o outro demorava a responder, perguntou de novo: o que é isso?
Um homem de uns vinte anos, acho, respondeu o dr. Bortot, voltando-se em seguida para seus assistentes a fim de fazê-los continuar com o trabalho. Demorou um pouquinho para que Litfin se recuperasse da resposta grosseira, mas, quando o fez, passou sobre a terra revolvida e se posicionou ao lado do outro médico. Ficaram ali por um bom tempo sem dizer nenhuma palavra, lado a lado, observando os dois assistentes revolvendo a terra com vagar. Passados alguns minutos, um dos homens entregou outro osso ao dr. Bortot, que, com um rápido olhar, identificou-o e posicionou-o ao final do outro pulso. O mesmo posicionamento rápido se deu com os dois ossos seguintes. Ali, à sua esquerda, Pizetti, disse Bortot, apontando para um minúsculo artelho exposto no extremo oposto da vala. O homem a quem ele se dirigiu visualizou o objecto, agachou-se, apanhou-o e entregou-o ao médico. Bortot o estudou por um instante, mantendo-o delicadamente entre o polegar e o indicador, e depois se voltou para o alemão. Cuneiforme lateral?, perguntou.
Litfin acompanhou o movimento dos seus lábios enquanto ele olhava para o osso. Sem dar tempo para que respondesse, Bortot passou o osso para ele. Litfin pegou-o nas mãos por um momento, depois olhou para os ossos espalhados sobre o plástico a seus pés. Ou intermediário, Litfin respondeu, mais à vontade com o latim que com o italiano. Sim, sim, talvez, Bortot replicou. Fez um aceno em direcção ao plástico e Litfin curvou-se para colocá-lo no fim do osso comprido que se unia ao pé. Ergueu-se e os dois olharam para ver o resultado. Ja, ja murmurou Litfin, e Bortot assentiu com a cabeça. Por mais uma hora os dois permaneceram juntos ao lado do sulco feito pelo tractor, revezando-se para apanhar os ossos dados pelos assistentes, que continuavam a passar o rico solo pela peneira. De quando em quando divergiam sobre um fragmento ou uma lasca, mas em geral concordavam na classificação do que lhes era passado pelos dois cavadores. O sol primaveril caía sobre eles. Ao longe, um cuco passou a emitir o seu canto de acasalamento, repetindo-o até que os quatro homens não lhe dessem mais bola. À medida que o calor aumentava, eles começaram a tirar os seus casacos, que acabaram todos pendurados nos galhos mais baixos das árvores alinhadas a um dos lados do terreno que delimitavam a propriedade». In Donna Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-056-7.

Cortesia da CdasLetras/JDACT