sexta-feira, 2 de junho de 2017

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «Não entendo o que diz, queixava-se Leonor, embrulhada numa tácita distância. Sancho calava, com o coração apertado»

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Era uma vez um menino
«(…) Depois de o cortejo fúnebre depositar o féretro em Santa Cruz, sobe agora a ladeira até ao paço da alcáçova com o jovem rei no meio. O povo, temeroso dos poderes da escuridão, foi-se retirando mal o sol se escondeu por detrás do casario. Os destemidos que permaneceram, inclinam a cabeça ao herdeiro em discreta veneração. Sancho corresponde com a mão direita levantada. Choveu todo o caminho, está encharcado até aos ossos. Só quando se apeia, no pátio, dá pelo desconforto do fato colado ao seu corpo magro. O movimento nunca foi tão intenso. As portas franqueiam-se aos barões do Norte e seus vassalos, aos cavaleiros vilãos dos concelhos que vêm apresentar condolências. Os maiores da cúria aceitam-nas em nome do pequeno rei e mandam-no subir, para trocar as vestiduras. Os criados acendem a lareira da sala do trono, preparam a selha para o banho, reaquecem a ceia entretanto arrefecida. A cozinha fervilha como nos velhos tempos.
O Inverno ainda se arrasta pelos contornos da noite numa despedida morosa e o negrume vem cobrindo os telhados húmidos com um espesso manto de névoas. Só o aroma das panelas e do espeto conforta os nobres de jornada tão longa. Tristeza não, a tristeza não é deles, é dos infantes. Não esperam por Sancho para devorar a carne assada. Teresa Martins Riba de Vizela, prima do alferes-mor e antiga ama de Sancho, faz um esgar de desprezo quando passa pelo átrio. Quem olhará pelo pequeno rei e pelos irmãos com afecto genuíno? Sobe ao quarto onde se encontram, para esperar o menino que em tempos amamentara. Alguém se lembrara de os reunir a todos sob o mesmo tecto, na altura em que pusessem a coroa na cabeça de Sancho.
Já a entrar na idade núbil, Leonor bem sabe que o futuro é incerto. Que destino lhe darão? Afonso finge valentia com os punhos cerrados, embora siga todos os movimentos dos barões da cúria. Fernando, de apenas cinco anos, repete que não entende porque o castigaram e lhe roubaram os pais. Deixava de comer naquela tarde em que procurava Sancho e lhe diziam que ele se preparava para viajar até Santarém, para trazer o corpo do pai. Antes de partir, o futuro rei afagava-lhe os cabelos anelados e falava-lhe baixinho: o que tens, por que não comes? O pequeno virava para ele os olhos grandes marejados, e de lábios esticados num amuo sentido, confessava a sua mágoa: os pais não gostavam de nós, a mãe partiu e não me disse nada, só confessou que estava doente, agora o pai foi embora e também não me avisou; devia gostar mais de João Afonso, quis ir para o céu com ele...
Não entendo o que diz, queixava-se Leonor, embrulhada numa tácita distância. Sancho calava, com o coração apertado. Tão pouco Fernando convivera com o pai e tanto ansiava pelo seu abraço. Só Afonso exibia aquele sorriso irónico e traduzia o desgosto do mais novo: não sabes que os bastardos do pai também morreram?, piscava um olho, a pedir cumplicidade. Sancho puxava-o contra a parede, de punhos cerrados, e falava-lhe em tom de voz quase inaudível: como sabia ele dos bastardos? Disse-lho eu, não fossem outros fazê-lo, mas para não sofrer muito, contei-lhe que ambos tinham partido. Tremia diante do furor do irmão maior: devias ter vergonha, dizia-lhe o pequeno rei, largando-o depois bruscamente. E afagando de novo o rosto do mais pequeno, ali mesmo lhe contava que havia dois bastardos, sim, mas estavam ainda vivos. O pai não fora nada ao encontro deles, tivera que partir por não aguentar as dores. Sacode os cabelos molhados como se afastasse as lembranças, antes de empurrar a porta. Teme mais a responsabilidade familiar do que o cenho dos barões da cúria. Teresa insiste para que se junte aos conselheiros, mas Sancho rejeita a ideia». In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3. 

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT