segunda-feira, 8 de maio de 2017

O Segundo Sexo. Simone Beauvoir. «Hegel observa com razão que a relação sexual não se deixa reduzir a uma relação entre os gametas. É portanto necessário estudar o organismo feminino na sua totalidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

Factos e Mitos. Destino
«(…) Assim o óvulo, activo em seu princípio essencial, a saber, o núcleo, é superficialmente passivo; sua massa fechada sobre si mesma, encerrada em si mesma, evoca a espessura nocturna e o repouso do em si; é sob a forma da esfera que os Antigos representavam o mundo fechado, o átomo opaco; imóvel, o óvulo espera. Ao contrário, o espermatozóide aberto, miúdo, ágil, representa a impaciência e a inquietação da existência. Não se deve deixar-se seduzir pelo prazer das alegorias; assimilou-se, por vezes, o óvulo à imanência, o espermatozóide à transcendência. Mas é renunciando à sua transcendência, à sua mobilidade, que este penetra no elemento feminino. É sugado e castrado pela massa inerte que o absorve depois de o ter mutilado, arrancando-lhe a cauda. Eis uma acção mágica, inquietante como todas as acções passivas; ao passo que a actividade do gameta masculino é racional: é um movimento mensurável em termos de tempo e de espaço. Na verdade, não são isso mais do que divagações. Gametas masculinos ou femininos fundem-se no ovo. Juntos, eles se suprimem em sua totalidade. É um erro pretender que o óvulo absorve vorazmente o gameta masculino e igualmente falso dizer que este se anexa vitoriosamente às reservas da célula feminina, porquanto, no acto que os confunde, a individualidade de um e de outro desaparece. E, talvez, o movimento apresenta-se ao pensamento mecanicista como o fenómeno racional por excelência; mas para a física moderna não se trata de uma ideia mais clara do que a de uma acção à distância.
Ignora-se, aliás, o pormenor das acções físico-químicas que redundam em encontro fecundante. É possível, entretanto, reter uma indicação válida dessa confrontação. Há, na vida, dois movimentos que se conjugam; ela só se mantém em se superando e só se supera com a condição de se manter. Esses dois momentos realizam-se sempre juntos, pensá-los separados é pensar abstratamente. Entretanto, é ora um, ora outro que domina. Em sua união, os dois gametas superam-se e perpetuam-se ao mesmo tempo, mas o óvulo, na sua estrutura, antecipa as necessidades futuras. É constituído de maneira a nutrir a vida que despertará nele. Ao contrário, o espermatozóide não está absolutamente equipado para assegurar o desenvolvimento do germe que suscita. Em compensação, o óvulo é incapaz de provocar a mudança que suscitará uma nova explosão de vida; ao passo que o espermatozóide se desloca. Sem a previdência ovária, a sua acção seria vã; mas, sem a sua iniciativa, o óvulo não cumpriria suas possibilidades activas. Logo, concluímos que, fundamentalmente, o papel dos dois gametas é idêntico: criam juntos um ser vivo em que ambos se perdem e se superam. Mas, nos fenómenos secundários e superficiais que condicionam a fecundação, é pelo elemento masculino que se opera a variação de situação necessária ao novo desabrochar da vida; é pelo elemento feminino que esse desabrochar se fixa num organismo estável.
Seria ousado deduzir de tal verificação que o lugar da mulher é no lar: mas há pessoas ousadas. No seu livro Le tempérament et le caractère, Alfred Fouillée pretendia, outrora, definir toda a mulher a partir do óvulo e o homem a partir do espermatozóide; muitas teorias, ditas profundas, assentam nesse jogo de analogias duvidosas. Não se sabe muito bem a que filosofia da Natureza esses pseudo-pensamentos se referem. Se se consideram as leis da hereditariedade, homens e mulheres saíram igualmente de um espermatozóide e de um óvulo. Suponho, antes, que flutuam nesses espíritos brumosos sobrevivências da velha filosofia medieval, segundo a qual o cosmo era o exacto reflexo de um microcosmo: imagina-se que o óvulo é um homúnculo feminino e a mulher, um óvulo gigante. Esses devaneios abandonados desde a época da alquimia estabelecem um estranho contraste com a precisão científica das descrições sobre as quais nos alicerçamos no mesmo momento: a biologia moderna acomoda-se mal ao simbolismo medieval; mas os nossos sonhadores não olham de tão perto. Sendo um pouco escrupuloso, concorda-se, porém, em que do óvulo à mulher há um longo caminho. No óvulo, a própria noção de fêmea ainda não se acha contida. Hegel observa com razão que a relação sexual não se deixa reduzir a uma relação entre os gametas. É portanto necessário estudar o organismo feminino na sua totalidade». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, 2009 / 2015, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplumada, ISBN 978-989-722-193-4.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT