segunda-feira, 29 de maio de 2017

O Labirinto Perdido. Kate Mosse. «Alice vira-se, alarmada, deixando cair o isqueiro. A caverna mergulha na escuridão. Ela tenta correr, mas fica desorientada no escuro»

cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eles não lhe podem fazer mal. Determinada a não se deixar dominar pelo medo, Alice se força a se agachar, tomando cuidado para não desarrumar mais nada. Corre os olhos pela sepultura. Uma adaga repousa entre os corpos, o fio cego devido aos anos, assim como alguns fragmentos de tecido. Ao lado da adaga há uma bolsa de couro fechada por uma tira embutida, grande o suficiente para conter uma pequena caixa ou um livro. Alice franze o cenho. Tem certeza de ter visto algo assim antes, mas a lembrança não vem. O objecto redondo e branco encaixado entre os dedos que parecem garras do esqueleto menor é tão pequeno que Alice quase não o vê. Sem parar para pensar se é a coisa certa a fazer-se, tira rapidamente a sua pinça do bolso. Abaixa-se e, com cuidado, retira o objecto, em seguida ergue-o em direcção à chama, soprando delicadamente a poeira para ver melhor.
E um pequeno anel de pedra, simples e sem atractivos, com uma faceta redonda e lisa. O anel também é estranhamente familiar. Alice olha mais de perto. Há um desenho gravado no interior. No início, ela pensa que é algum tipo de selo. Então, com um choque, percebe. Levanta os olhos para as marcas na parede dos fundos da câmara, depois torna a olhar para o anel. Os desenhos são idênticos. Alice não é religiosa. Não acredita nem no céu nem no inferno, nem em Deus nem no diabo, nem nas criaturas que dizem assombrar aquelas montanhas. Mas, pela primeira vez na vida, sente-se dominada pela sensação de estar na presença de algo sobrenatural, algo que ultrapassa a sua experiência e a sua compreensão. Pode sentir a maldade esgueirando-se sob a sua pele, seu couro cabeludo, as solas dos seus pés.
Ela perde a coragem. A caverna parece subitamente fria. O medo aperta a sua garganta, congelando o ar nos seus pulmões. Alice põe-se de pé atabalhoadamente. Não deveria estar ali, naquele lugar ancestral. Agora está desesperada para sair da câmara, para se distanciar das provas de violência e do cheiro da morte, para estar novamente na luz do sol, segura e brilhante. Mas é tarde demais. Acima ou atrás de si, não consegue distinguir onde, ela ouve passos. O som ecoa pelo espaço confinado, ricocheteando nos rochedos e nas pedras. Vem vindo alguém.
Alice vira-se, alarmada, deixando cair o isqueiro. A caverna mergulha na escuridão. Ela tenta correr, mas fica desorientada no escuro e não consegue achar a saída. Tropeça. As suas pernas parecem incapazes de sustentá-la. Ela cai. O anel é lançado de volta para junto da pilha de ossos, onde é o seu lugar.

Los Seres. Sudoeste de França
Alguns quilómetros em linha recta a leste dali, num vilarejo perdido nos Montes Sabarthès, um homem alto e magro vestido com um casaco claro está sentado sozinho diante de uma mesa de madeira escura e encerada. O tecto onde ele está é baixo, e o chão feito de grandes quadrados de cerâmica da cor da terra vermelha da montanha, que mantêm o aposento fresco apesar do calor lá fora. A única janela está fechada, tornando o lugar escuro excepto por uma pequenina luz lançada por uma pequena lamparina a óleo, em cima da mesa. Ao lado da lamparina há um copo de vidro cheio quase até à borda com um líquido vermelho. Espalhadas pela mesa há várias folhas de um papel grosso cor de creme, cada uma delas inteiramente coberta de linhas em tinta preta com uma caligrafia perfeita. O quarto está silencioso, excepto pelo arranhar e deslizar da caneta e pelo tilintar das pedras de gelo nas laterais do copo quando ele bebe. Paira no ar um leve cheiro de álcool e frutas. As batidas do relógio marcam a passagem do tempo enquanto ele pára, pensa, e torna a escrever. O que deixamos para trás nesta vida é a lembrança de quem fomos e do que fizemos. Uma marca, não mais do que isso. Eu aprendi muito. Tornei-me sábio. Mas será que fiz alguma diferença? Não saberia dizer. Pas a pas, se va luènh». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT