quarta-feira, 31 de maio de 2017

Gutenberg no 31. O Livro dos Prazeres Proibidos. Federico Andahazi. «No entanto, desde que uma série de factos macabros irrompeu no Mosteiro da Sagrada Canastra, o habitual clima festivo dera lugar a um silêncio compacto»

Cortesia de wikipedia e jdact

«As seis torres da basílica de St. Martin cravavam as suas agulhas afiladas na névoa nocturna, desapareciam na bruma e voltavam a aparecer por cima do tecto etéreo que cobria a cidade de Mainz. Um românico e outro bizantino, ambos os absides da catedral se impunham sobre as outras cúpulas da cidade. Mais além, as águas do Reno deixavam à mostra as ruínas da velha ponte de Trajano, que, assim como o esqueleto de um monstro encalhado, jazia entra as duas margens do rio. Os tectos de ardósia enegrecida do castelo e os cinquenta arcos do antigo aqueduto romano coroavam o orgulhoso cume da colina da Zitadelle. A poucas ruas da basílica erguia-se o pequeno Mosteiro das adoradoras da Sagrada Canastra. A rigor, aquele austero edifício de três andares que se alçava na Korbstrasse, perto do Marktplatz, não era exactamente um mosteiro. Pouca gente sabia que, atrás da sóbria fachada, se ocultava o bordel mais extravagante e luxurioso do Império, o que, certamente, significava muita coisa. O nome do bordel era resultado da conjunção do nome da rua em que estava situado e da devota dedicação com que as prostitutas da casa se encarregavam de dar prazer aos privilegiados clientes.
Durante o dia, naquele beco pavimentado, eram abertas as persianas das lojas dos fabricantes de canastras, cujos principais clientes eram os barraqueiros da praça do mercado. Mas, quando a noite caía e os cesteiros fechavam as suas portas, a rua voltava a se animar com a farra das tavernas e das canções vulgares das prostitutas, que, inclinadas nas janelas, exibiam os seus decotes generosos aos passantes. Diferentemente dos bordéis comuns, pintados de cores vivas e apinhados de mulheres desdentadas, hediondas e assanhadas, o mosteiro passava virtualmente despercebido. As meretrizes da casa eram donas de um recato sensual e de uma lasciva religiosidade que despertavam tentações semelhantes às que suscitavam as jovens virgens que habitavam os conventos. Quantos homens nutriam o desejo secreto de participar de uma orgia com as monjas de uma irmandade? Talvez a realização daqueles lúbricos anseios fosse o segredo do sucesso da singular casa de prostitutas.
No entanto, desde que uma série de factos macabros irrompeu no Mosteiro da Sagrada Canastra, o habitual clima festivo dera lugar a um silêncio compacto, feito com a argamassa do terror. Quando o sol se punha, uma espera angustiante apoderava-se das mulheres, como se uma nova tragédia fosse se precipitar. Naquela noite de 1455, o medo estava tão denso quanto a névoa que abraçava a cidade. Os bordéis vizinhos e as tavernas já haviam fechado as portas. A bruma parecia uma ave de mau agouro sobrevoando os telhados. No mosteiro restava apenas um punhado de clientes. As mulheres suplicavam a Deus para não serem escolhidas pelos visitantes. A única coisa que queriam era trancar-se nos seus aposentos, se entregar ao sono e esperar que, nas janelas, surgisse um novo amanhecer.
Zelda, uma das prostitutas mais requisitadas do bordel, estava ali havia bastante tempo e podia escolher os seus clientes e decidir quando e como ofereceria os seus serviços. Assim, fazendo uso de suas bem-conquistadas prerrogativas, deu a noite por encerrada, correu o ferrolho na porta de seu claustro e trocou as cobertas da cama. Antes de se preparar para dormir, foi à janela: a rua estava vazia, e a névoa quase não permitia ver os prédios da calçada oposta. Fechou as persianas e passou o grande trinco que travava as janelas. Sentada na beira da cama, tirou a roupa como se quisesse desembaraçar-se não somente do espartilho que lhe apertava o ventre e as costelas, mas de qualquer vestígio da jornada que acabara de terminar. Humedeceu
 um lenço de algodão numa bacia com água de rosas e depois friccionou-o pelo corpo com movimentos lentos e repetitivos. Como se se tratasse de um ritual religioso íntimo, de uma espécie de unção autoimposta, Zelda passava o tecido empapado na pele com a solenidade de uma sacerdotisa. Embora já não fosse mais jovem, tinha o corpo escultural das cariátides (suporte arquitectónico, originário da Grécia antiga, que se apresentava quase sempre com a forma de uma estátua feminina) gregas: as pernas torneadas, as cadeiras generosas e os mamilos desafiadores. À medida que esfregava o lenço, Zelda livrava-se das marcas que o passar do dia deixara e removia os restos das efusões alheias. Parecia querer tirar da sua pele não apenas as marcas da dura jornada, mas também as outras, aquelas que não podem ser removidas com água de rosas, as indeléveis, as que se tornam carne mais além da carne.
Aquela lavagem íntima lhe devolvia um pouco da calma que havia perdido desde que a noite caíra com seu véu de bruma escura. Enxaguou o lenço e pensou ter ouvido uma suave crepitação em algum canto. Virou a cabeça para os lados, mas não viu nada fora de lugar. Talvez, tranquilizou-se, tivesse sido o subtil eco da água batendo na porcelana. Voltou a mergulhar o pano e, então, viu, na superfície curva da bacia, o reflexo de uma figura atravessando as cortinas. Ficou imóvel. Não se atreveu a olhar para trás. Havia alguém dentro do quarto. Somente então Zelda compreendeu que ela armara a sua própria armadilha. Estava trancada. Não tinha tempo nem distância suficiente para puxar o ferrolho da porta ou o trinco da janela: estava ao alcance das mãos do estranho. À medida que imaginava uma forma de fugir do claustro, via, no reflexo da porcelana, aquela figura surgir de detrás das cortinas com o braço levantado. Sabia o que iria acontecer. Relutantemente, esperava por aquilo. Era a eleita. Como se fosse feito da mesma substância escura, fria e silenciosa da névoa, aquele vulto estivera observando-a o tempo todo. Zelda deixou o lenço cair no recipiente e tentou recompor-se. Já era tarde. Sentiu que o intruso a pegava por trás, cercando-a com um braço, ao mesmo tempo que, com a outra mão, tapava-lhe a boca para que não pudesse gritar. Enquanto tentava  libertar-se, a mulher via, pelo canto do olho, o capuz preto que ocultava a cabeça do seu agressor, que, com a mão levantada, empunhava um escalpelo brilhante e aterrorizante.
Num único movimento rápido e preciso, o agressor enfiou na boca de Zelda o pano com o qual, até há pouco, ela se asseara delicadamente. Com os seus dedos longos e ágeis, o intruso empurrou o trapo na garganta até obstruir-lhe a traqueia. A mulher revolvia-se tentando tomar ar, mas o tecido molhado era um obstáculo intransponível. A figura encapuzada limitava-se então a prender os braços de Zelda para a impedir de arrancar o pano com as mãos e assegurar-se, assim, de que ela não podia respirar nem emitir som algum. Era apenas questão de esperar que a asfixia chegasse ao fim». In Federico Andahazi, O Livro dos Prazeres Proibidos, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-692-7.



Cortesia de EBertrandB/JDACT

O Século XVI no 31. O Anatomista Federico. Andahazi. «Com algum exagero, chegou-se a dizer que no século XVI foi travada a Batalha dos sexos»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Século das Mulheres
«O século XVI foi o século das mulheres. A semente que Christine Pisan semeara cem anos antes florescia por toda a Europa com o doce perfume de O ditado dos verdadeiros amantes. Não foi de modo algum casual que o descobrimento de Mateo Colombo tenha eclodido no tempo e no espaço em que se deu. Até ao século XVI, a História era narrada pela grave voz masculina. Onde quer que se olhe, lá está ela com a sua infinita presença: do século XVI ao XVIII, na cena doméstica, económica, intelectual, pública, conflitual e até mesmo lúdica da sociedade, encontramos a mulher. Em geral, solicitada pelas suas tarefas quotidianas. Mas também presente nos acontecimentos que constituem, transformam ou dilaceram a sociedade. De cima a baixo da escala social, ela ocupa o conjunto dos espaços, e sobre a sua presença falam constantemente aqueles que a contemplam, amiúde para assustar-se, declaram Natalie Zemón e Arlette Farge em História das mulheres. O descobrimento de Mateo Colombo surge, precisamente, quando os âmbitos das mulheres, sempre da porta para dentro, começam, pouco a pouco e subtilmente, a sair dos muros dos beatérios e dos mosteiros, dos prostíbulos ou da tépida, mas não menos monástica, doçura do lar. A mulher, timidamente, atreve-se a discutir com o homem. Com algum exagero, chegou-se a dizer que no século XVI foi travada a Batalha dos sexos. Verdade ou não, a questão das incumbências das mulheres instala-se como um tema de discussão entre os homens.
Em tais circunstâncias, o que era a América de Mateo Colombo? Certamente, o limite entre a descoberta e a invenção é muito mais difuso do que parece à primeira vista. Mateo Colombo, é hora de dizer, descobriu aquilo com que todo homem sonhou alguma vez: a chave mágica que abre o coração das mulheres, o segredo que governa a misteriosa vontade do amor feminino. Aquilo que, desde o começo da História, foi buscado por bruxos e feiticeiras, xamãs e alquimistas, mediante a infusão de toda sorte de ervas ou o favor de deuses e demônios, aquilo, enfim, que todo homem apaixonado sempre ansiou, ferido pelo desamor do objecto de seus desvelos e de sua desdita. E também, aliás, aquilo com que monarcas e governantes sonharam, pela mera ambição da omnipotência: o instrumento que subjugasse a volátil vontade feminina. Mateo Colombo buscou, peregrinou e, finalmente, encontrou a sua doce terra desejada: o órgão que governa o amor nas mulheres. O Amor Veneris tal é o nome com que o anatomista o baptizou, se me é permissível dar nomes às coisas por mim descobertas, constituía um verdadeiro instrumento de potestade sobre o escorregadio, e sempre obscuro, arbítrio feminino. Por certo, tal achado apresentava mais de uma aresta: com que calamidades a cristandade não se veria confrontada se as hostes do demónio se apoderassem do feminino objecto do pecado?, perguntavam-se, escandalizados, os Doutores da Igreja. O que seria do rentável negócio da prostituição se qualquer pobre entrevado pudesse ganhar o amor da mais cara das cortesãs?, perguntavam-se os ricos proprietários dos esplêndidos lupanares de Veneza. Ou, ainda pior, o que aconteceria se as filhas de Eva descobrissem que trazem no meio das pernas as chaves do céu e do inferno?
O descobrimento da América de Mateo Colombo foi também, e na sua medida, uma épica, cortada pela ladainha de um réquiem. Mateo Colombo foi tão feroz e impiedoso quanto Cristóvão; como aquele, e com a mesma literal propriedade, foi um colonizador brutal que reclamava para si mesmo o direito sobre as terras descobertas: o corpo da mulher. Por outro lado, porém, para além do que significava o Amor Veneris, outra polémica seria suscitada pelo que era esse órgão. Existirá o órgão que Mateo Colombo descreveu? Essa é uma pergunta inútil que deveria, em todo caso, ser substituída por outra: existiu o Amor Veneris? As coisas são, ao fim e ao cabo, as vozes que as nomeiam. Amor Veneris, vel Dulcedo Apelete, nome com que o seu descobridor baptizou o órgão, tinha um conteúdo fortemente herético. Se o Amor Veneris coincide com o menos apóstata e mais neutro kleitoris (comichão), que alude a efeitos antes que a causas—, é um assunto que haverá de preocupar os historiadores do corpo. O Amor Veneris existiu por razões diferentes das razões da anatomia; existiu não só porque fundou uma nova mulher, mas porque, além disso, promoveu uma tragédia. O que vem a seguir é a história de um descobrimento». In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998,  ISBN 978-972-232-362-8.

Cortesia de EPresença/JDACT

Mistério no 31. O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. «Quando se acostumou um pouco à escuridão, o mestre conseguiu ver num dos cantos do quarto as costas de um menino sobre o fundo claro de uma tela»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Num dia de 1474, o abade Tomasso Verani apareceu no atelier de Francesco Monterga com uns papéis enrolados debaixo do braço. O padre Verani, que dirigia o Ospedale degli Innocenti, saudou o pintor com uma expressão fulgurante, estava mais animado do que nunca, incapaz de esconder a sua euforia. Desenrolou com grande expectativa as folhas sobre uma mesa do atelier e pediu ao mestre a sua qualificada opinião. Francesco Monterga examinou sem grande interesse o primeiro desenho que o padre lhe mostrava. Pensando que fosse uma temerária tentativa do próprio abade nos mares da pintura, tentou ser piedoso. Sem nenhum entusiasmo, com um tom que parecia querer desestimular o outro, balançando levemente a cabeça, disse sobre o primeiro desenho: não está mal. O desenho a carvão retratava os nove arcos do pórtico do orfanato construído por Brunelleschi, e o mestre pensou que podia ser muito pior, por se tratar de um principiante. Chamou a atenção para o bom manejo da perspectiva que dominava a visão do pórtico, ao fundo, o bom traço com que havia sido desenhado o campanário da Santissima Annunziata. O uso de luz e sombra era um tanto torpe, mas pelo menos estava próximo do procedimento usual. Antes que pudesse formular uma crítica mais conclusiva, o padre Verani abriu outro desenho sobre o primeiro, que o mestre ainda não havia examinado completamente. Era um retrato do próprio abade, uma sanguina (giz de cera de cor vermelha) que revelava um traço inocente mas decidido e solto. A expressão do padre havia sido alcançada no retrato. De qualquer modo, disse o mestre para si mesmo, entre a correcção que os desenhos mostravam e o talento de um artista havia um oceano intransponível. Ainda mais considerando a idade do abade Verani. Procurou encontrar as palavras adequadas para, por um lado, não ferir o amor-próprio do padre e, por outro, para não entusiasmá-lo em vão.
Meu querido abade, é evidente a dedicação que estes trabalhos revelam, mas na nossa idade..., titubeou. Quero dizer..., seria a mesma coisa que se eu, na minha idade, aspirasse a ser cardeal... Como se tivesse acabado de receber o maior dos elogios, o padre Verani, com os olhos brilhando, interrompeu o veredito: e o senhor ainda não viu nada, disse o padre. O padre Verani tomou o braço de Francesco Monterga e praticamente o arrastou até à porta, deixando sobre a mesa o resto dos desenhos. Levou-o escadas abaixo e, antes que o mestre pudesse falar, já estavam na rua, a caminho do Ospedale degli Innocenti.
O mestre conhecia a veemência do padre Verani. Quando metia algo na cabeça, não havia razão capaz de dissuadi-lo de alcançar os seus propósitos. Caminhava sem soltar o braço de Monterga, que, enquanto tentava seguir o passo do abade, não se perdoava por ter sido brando em seu veredicto. Quando dobraram na via dei Servi, o pintor soltou-se da mão pegajosa que apertava o seu braço e esteve a ponto de gritar ao padre o que devia ter dito minutos antes, no atelier. Mas já era tarde. Estavam na porta do hospício. Cruzaram em diagonal a piazza, passaram por baixo do pórtico e entraram no edifício. Armado com um escudo de paciência e resignação, o mestre estava disposto a perder a manhã com o novo capricho do abade. O pequeno cubículo a que foi conduzido era um atelier improvisado, escondido atrás do ambulatório; era um lugar tão reservado que parecia ser clandestino. Aqui e ali se amontoavam tábuas, telas, papéis, pincéis, carvões e se respirava o cheiro áspero do atramento (tinta escura também usada como verniz) e de extractos vegetais. Quando se acostumou um pouco à escuridão, o mestre conseguiu ver num dos cantos do quarto as costas de um menino sobre o fundo claro de uma tela. A mão do pequeno ia e vinha pela superfície da tela com a mesma desenvoltura de uma andorinha voando pelo céu transparente. Era uma mão tão pequena que quase não conseguia segurar direito o carvão. Conteve a respiração, emocionado, temendo que o menor ruído pudesse estragar o espectáculo. O padre Verani, com as mãos cruzadas sob o abdómen e com um sorriso santificado, contemplava a expressão perplexa e maravilhada do mestre». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT

O Amor no 31. Inês. Maria Fialho Gouveia. «A senhora de Albuquerque não se cansava de alembrar à sua prima a fineza da sua genealogia, por mor de a manter viva, sublinhando que aquele seu proeminente antepassado casara com dona Teresa Sanches»

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As Encostas de Albuquerque
«(…) A pequena Castro era uma donzela de boa linhagem, filha natural do nobre galego Pedro Fernandes Castro com a sua amante portuguesa, dona Aldonça de Vaiadares. O pai cedo confiara a educação da filha à sua prima, Teresa, unida por matrimónio a Afonso Sanches, filho ilegítimo de Dinis I, rei de Portugal, que por ela zelara desde os seus primeiros passos. A dama espanhola. Mãe de um único filho vivo, João Afonso Albuquerque, tido pelo Ataúde, agora já homem feito, com 26 anos, criara-a com o esmero de a uma filha. Primos direitos, Pedro e dona Teresa eram netos de Sancho IV de Castela, embora filhos de diferentes cortesãs daquele rei, de quem descendiam por via da bastardia. Unia-os, assim, o sangue e a estirpe, que orgulhosamente defendiam e que conduziu Inês da sua Galiza natal ao calor da Extremadura.
Inês Valadares Castro nascera em Monforte de Lemos, abastado e frondoso domínio do seu pai, senhor de Lemos e Sarria, em 1325. Tinha um par de anos de idade apenas quando foi entregue a dona Teresa Martins Meneses, sua prima em segundo grau por via paterna, para ser criada na Extremadura castelhana, junto à fronteira com Portugal, no senhorio de Albuquerque. A alma soalheira e solta da jovem Castro logo rimou com a clara luz da paisagem raiana e o alvoroço próprio da sua localização limítrofe, que dava passagem entre os dois reinos. A imponência daquele alcácer, que se elevava ufano das colinas escarpadas da serra de São Pedro, os seus baluartes, as suas portas de arcos quebrados, e a largueza das vistas que das suas ameias se alcançavam, arrastavam céu acima o pueril espírito de Inês. Dali se vê o mundo inteiro!, dizia na sua candura. E se a fortaleza a engrandecia, era na pequena igreja trecentista de Santa Maria Maggiore, românica e situada no interior do castelo, que a Castro apaziguava o seu ânimo sedento de aventura, penitenciado nas suas preces de criança.
Diziam uns que o nome daquela terra, que a petiza logo amara, vinha do árabe Abu al-Qurq, pai da cortiça ou do carvalho; outros, que a baptizara antes a expressão latina Albus Quercus, que significava azinheira branca, o que de facto rimava com a paisagem deste feudo. O que se tinha por certo, todavia, era que as origens da pequena vila de Albuquerque se perdiam na névoa do tempo. Provavelmente, contara-lhe dona Teresa, teria sido fundada pelos celtas, antes ainda da chegada dos romanos, uns 6oo anos antes de Cristo. Mais de um milénio depois, fora invadida pelos mouros, tal como grande parte da Península Ibérica, despoletando as guerras da reconquista cristã, que se prolongaram por vários séculos, tornando-a um palco de batalhas, que a passavam de mão em mão. Em 1166 foi a vez de ser arrebatada aos sarracenos por Fernando II de Leão, que a doaria, uma década mais tarde, à Ordem Militar de Santiago; mas não muito tempo passaria até que voltasse para o domínio muçulmano, por acção do califa Abu Yaqub Yusuf al-Shanid. Já na décima terceira centúria, Afonso Teles Meneses, antepassado de dona Teresa, encontrou Albuquerque abandonada e tratou de a povoar definitivamente com as suas hostes lusitanas e cristãs. Data assim da era milenar o seu robusto castelo, cujos muros foi reforçando contra o ataque dos infiéis, ciente de que a vila não estava suficientemente segura; sete anos assim aguentando, com bravura e valentia, as investidas dos mouros, que chegaram a deixar a povoação sitiada, sem água nem mantimentos.
A senhora de Albuquerque não se cansava de alembrar à sua prima a fineza da sua genealogia, por mor de a manter viva, sublinhando que aquele seu proeminente antepassado casara com dona Teresa Sanches, filha ilegítima do rei Sancho I de Castela, vindo a ter por bisneto ao conde João Afonso Telo, mordomo-mor de Dinis de Portugal, 1º conde de Barcelos e 4º senhor de Albuquerque. E que esse senhor da ditosa vila não era nem mais nem menos do que o pai desta prima que tanto bem lhe queria: o resto já tu bem sabes: que herdei o senhorio de meu pai, tendo-me depois unido por matrimónio a Afonso Sanches, filho natural e eleito do rei Dinis, nascido em 1279, três anos antes dos esponsais de seu pai com Isabel de Aragão». ». In Maria João Fialho Gouveia, Inês, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN 978-989-884-372-2.

Cortesia de Topseller/20/20 Editora/JDACT

terça-feira, 30 de maio de 2017

Inês. Maria Fialho Gouveia. «Por que porta saireis vós?, acautelou dona Teresa. Pela de Valência!, esclareceu a menina. Não. Pela de Valência, não. Vão antes pela porta de São Mateus, que é mais seguro. A que ostenta o escudo de Afonso Sanches?»

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As Encostas de Albuquerque
«Senhora minha prima!... O que me queres, Inês?, perguntou dona Teresa Martins Meneses, pacientemente. Já terminei o lavor que me confiou, da bordadura do manto de Nossa Senhora, disse a pequena, arrebatando à sua tutora uma forte gargalhada. Ora, Inês, o manto de Nossa Senhora? Uma mantilha para pôr aos pés da santa da nossa bela igreja casteleja! Mas posso, senhora minha prima? Posso? Que fogo é esse, menina? E o que desejas? Permite-me que desça à vila, por folia?, suplicou a petiza, com os olhos cheios de céu. Por folia, dizes tu? E que folias são essas que te levam lá abaixo? Ora, calcorrear as ruas de Villa Adentro que as muralhas abraçam, beber das suas fontes, espreitar a Judiaria e a porta da sinagoga, ver aquelas casinhas caiadas de branco e flores às janelas, olhar as gentes, ver as outras moças galhofar. Muito me apraz também pasmar-me a mirar as lápides que o senhor seu marido fez esculpir sobre as portas da vila, e em cujos escudos se vêem vários castelos em que luzem as quinas do reino, aclarou a menina, os extensos cabelos dourados dançando com o movimento dos seus gestos.
São essas então as tuas folias..., sorriu a prima, entretida, na sua pose distinta de realeza. E, no entanto, bem sabes que a uma infanta não é dado passear-se desacompanhada pelo burgo. Oh, não me passaria pela cabeça descer à praça desamparada! Mencía e Ilduara ser-me-iam por companhia. Ilduara é-me precisa nos arrumos, recusou a senhora de Albuquerque. E Sancha? Dona Sancha andava ora mesmo pelos jardins a cuidar das rosas... Precisamente, a cuidar das rosas! Mas as rosas podem esperar. Leva-a, mais à Mencía, e não te quedes pelo povoado todo o santo dia, advertiu. Quero-te cá a horas das preces. Como lhe sou grata, senhora minha prima!, alegrou-se a petiza, saltitando irrequieta de pé em pé. Não me demorarei, juro, e terei sempre por perto às nossas criadas.
Por que porta saireis vós?, acautelou dona Teresa. Pela de Valência!, esclareceu a menina. Não. Pela de Valência, não. Vão antes pela porta de São Mateus, que é mais seguro. A que ostenta o escudo de Afonso Sanches? Essa mesma. Não se aflija, senhora minha prima, faremos conforme à sua vontade. Ah, e leva uma capa!, bradou dona Teresa, já a menina, de coifa pendida na nuca, lhe escapava da vista por entre as notáveis paredes do castelo, segurando as fraldas das saias do seu vestido tom de milho. E não me saias fora das muralhas! Jamais! Ouviu-lhe ainda prometer, na sua voz pequenina e abafada por aqueles sólidos muros, já ela ia corredor acima.
Corria o ano de Cristo de 1331. Reinava então Afonso XI, senhor de Castela e Leão, e nas suas terras respirava-se uma paz débil e quebradiça, mas sem grandes conflitos bélicos, nem nomeáveis sobressaltos. Um mal-estar persistente e temerário entre os soberanos de Castela e Portugal, todavia, ameaçava a bonança, motivado pelos despropósitos com que o jovem monarca castelhano humilhava a sua mulher, Maria de Portugal, filha do rei vizinho, com uma amante que havia muito mantinha. Se o era por Afonso IV muito amar a filha, por orgulho de Estado, ou por mero receio de que um bastardo daquele (que além de genro era seu sobrinho) viesse a frustrar as ambições políticas do neto, que nem gerado ainda fora, não se o sabia dizer. Factos importantes e preocupantes, com efeito, de que Inês, na inocência e meninez dos seus tenros seis anos de idade, morava alheada, no seu modo leve e feliz de percorrer a vida». In Maria João Fialho Gouveia, Inês, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN 978-989-884-372-2.

Cortesia de Topseller/20/20 Editora/JDACT

segunda-feira, 29 de maio de 2017

O Labirinto Perdido. Kate Mosse. «Alice vira-se, alarmada, deixando cair o isqueiro. A caverna mergulha na escuridão. Ela tenta correr, mas fica desorientada no escuro»

cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eles não lhe podem fazer mal. Determinada a não se deixar dominar pelo medo, Alice se força a se agachar, tomando cuidado para não desarrumar mais nada. Corre os olhos pela sepultura. Uma adaga repousa entre os corpos, o fio cego devido aos anos, assim como alguns fragmentos de tecido. Ao lado da adaga há uma bolsa de couro fechada por uma tira embutida, grande o suficiente para conter uma pequena caixa ou um livro. Alice franze o cenho. Tem certeza de ter visto algo assim antes, mas a lembrança não vem. O objecto redondo e branco encaixado entre os dedos que parecem garras do esqueleto menor é tão pequeno que Alice quase não o vê. Sem parar para pensar se é a coisa certa a fazer-se, tira rapidamente a sua pinça do bolso. Abaixa-se e, com cuidado, retira o objecto, em seguida ergue-o em direcção à chama, soprando delicadamente a poeira para ver melhor.
E um pequeno anel de pedra, simples e sem atractivos, com uma faceta redonda e lisa. O anel também é estranhamente familiar. Alice olha mais de perto. Há um desenho gravado no interior. No início, ela pensa que é algum tipo de selo. Então, com um choque, percebe. Levanta os olhos para as marcas na parede dos fundos da câmara, depois torna a olhar para o anel. Os desenhos são idênticos. Alice não é religiosa. Não acredita nem no céu nem no inferno, nem em Deus nem no diabo, nem nas criaturas que dizem assombrar aquelas montanhas. Mas, pela primeira vez na vida, sente-se dominada pela sensação de estar na presença de algo sobrenatural, algo que ultrapassa a sua experiência e a sua compreensão. Pode sentir a maldade esgueirando-se sob a sua pele, seu couro cabeludo, as solas dos seus pés.
Ela perde a coragem. A caverna parece subitamente fria. O medo aperta a sua garganta, congelando o ar nos seus pulmões. Alice põe-se de pé atabalhoadamente. Não deveria estar ali, naquele lugar ancestral. Agora está desesperada para sair da câmara, para se distanciar das provas de violência e do cheiro da morte, para estar novamente na luz do sol, segura e brilhante. Mas é tarde demais. Acima ou atrás de si, não consegue distinguir onde, ela ouve passos. O som ecoa pelo espaço confinado, ricocheteando nos rochedos e nas pedras. Vem vindo alguém.
Alice vira-se, alarmada, deixando cair o isqueiro. A caverna mergulha na escuridão. Ela tenta correr, mas fica desorientada no escuro e não consegue achar a saída. Tropeça. As suas pernas parecem incapazes de sustentá-la. Ela cai. O anel é lançado de volta para junto da pilha de ossos, onde é o seu lugar.

Los Seres. Sudoeste de França
Alguns quilómetros em linha recta a leste dali, num vilarejo perdido nos Montes Sabarthès, um homem alto e magro vestido com um casaco claro está sentado sozinho diante de uma mesa de madeira escura e encerada. O tecto onde ele está é baixo, e o chão feito de grandes quadrados de cerâmica da cor da terra vermelha da montanha, que mantêm o aposento fresco apesar do calor lá fora. A única janela está fechada, tornando o lugar escuro excepto por uma pequenina luz lançada por uma pequena lamparina a óleo, em cima da mesa. Ao lado da lamparina há um copo de vidro cheio quase até à borda com um líquido vermelho. Espalhadas pela mesa há várias folhas de um papel grosso cor de creme, cada uma delas inteiramente coberta de linhas em tinta preta com uma caligrafia perfeita. O quarto está silencioso, excepto pelo arranhar e deslizar da caneta e pelo tilintar das pedras de gelo nas laterais do copo quando ele bebe. Paira no ar um leve cheiro de álcool e frutas. As batidas do relógio marcam a passagem do tempo enquanto ele pára, pensa, e torna a escrever. O que deixamos para trás nesta vida é a lembrança de quem fomos e do que fizemos. Uma marca, não mais do que isso. Eu aprendi muito. Tornei-me sábio. Mas será que fiz alguma diferença? Não saberia dizer. Pas a pas, se va luènh». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

O Labirinto Perdido. Kate Mosse. «De repente, ela não quer continuar. Não sente nenhuma vontade de estar ali»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sentindo-se nervosa e ligeiramente culpada, Alice enrola a fivela num lenço e a enfia no bolso, em seguida avança com cautela. A luz da chama é fraca, mas ilumina o caminho imediatamente à sua frente, lançando sombras sobre as paredes cinza e ásperas. À medida que avança mais, ela vai sentindo o ar frio se enroscar pelas suas pernas e braços nus como um gato. Está caminhando sobre uma rampa. Pode sentir o chão descendo sob seus pés, irregular e arenoso. O atrito das pedras e do cascalho ressoa alto naquele espaço confinado, silencioso. Ela tem consciência de que, quanto mais longe e mais fundo avança, mais a luz do dia vai ficando pálida atrás de si. De repente, ela não quer continuar. Não sente nenhuma vontade de estar ali. Mas é como se houvesse algo irresistível naquilo, algo a puxá-la para as entranhas profundas da montanha.
Dez metros mais adiante, o túnel termina. Alice vê-se na soleira de uma câmara fechada como uma caverna. Ela está em pé sobre uma plataforma de pedra natural. Um ou dois degraus rasos e largos bem na sua frente levam à área principal onde o chão foi nivelado até ficar plano e liso. A caverna tem cerca de dez metros de comprimento e talvez cinco de largura, e foi obviamente construída por mãos humanas, e não só pela natureza. O tecto é baixo e abobadado, como o de uma cripta.
Alice olha fixamente, segurando mais alto a chama tremeluzente e incomodada por uma curiosa familiaridade que a vai dominando e que ela não consegue explicar. Está prestes a descer os degraus quando percebe letras gravadas na pedra do degrau de cima. Inclina-se e tenta ler o que está escrito. Apenas as três primeiras palavras e a última letra, N, ou talvez H, estão legíveis. As outras estão carcomidas ou lascadas. Alice limpa a poeira com os dedos e recita as letras em voz alta. Naquele silêncio, o eco de sua voz parece de certa forma hostil e ameaçador. P-A-S A P-A-S... Pas a pas. Passo a passo? Passo a passo o quê? Uma vaga lembrança percorre a superfície de sua mente consciente, como uma canção há muito esquecida. E logo desaparece. Pas a pas, murmura ela dessa vez, mas aquilo não significa nada. Uma prece? Um aviso? Sem saber o que vem depois, não faz sentido.
Agora nervosa, ela endireita-se e desce os degraus um a um. Curiosidade e um mau pressentimento brigam no seu íntimo, e ela sente a pele dos braços finos e descobertos arrepiarem-se, embora não saiba se é por ansiedade ou por causa do frio da caverna. Alice levanta a chama bem alto para iluminar o caminho, tomando cuidado para não tropeçar nem tirar nada do lugar. No nível inferior, pára. Respira fundo e dá mais um passo rumo à escuridão de ébano. Mal consegue distinguir a parede da câmara. Aquela distância, é difícil ter certeza se não se trata apenas de uma ilusão criada pela luz ou de uma sombra lançada pela chama, mas parece haver um desenho circular de linhas e semicírculos pintados ou esculpidos na pedra. No chão em frente ao desenho está uma mesa de pedra de pouco mais de um metro de altura, como um altar.
Mantendo o olhar fixo no símbolo na parede para se guiar, Alice avança mais. Agora pode ver o desenho com mais clareza. Parece algum tipo de labirinto, embora a sua memória lhe diga que há algo errado com ele. Não é um labirinto de verdade. As linhas não conduzem ao centro como deveriam. O desenho está errado. Alice não consegue explicar por que tem tanta certeza disso, só sabe que está certa. Mantendo os olhos cravados no labirinto, vai chegando cada vez mais perto. O seu pé bate em algo duro no chão. Ouvem-se um baque leve e oco e o barulho de algo rolando, como se um objecto houvesse sido deslocado. Alice olha para baixo.
As suas pernas ficam bambas. A pálida chama na sua mão estremece. Chocada, ela não consegue respirar. Está de pé na beira de uma cova rasa. Uma leve depressão no solo, não mais do que isso. Nela há dois esqueletos do que um dia foram seres humanos, os ossos totalmente limpos pelo tempo. Os buracos vazios dos olhos de um dos crânios a encaram. O outro crânio, deslocado por seu pé, está virado de lado como alguém que desvia o olhar. Os corpos estão dispostos um ao lado do outro, de frente para o altar, como estátuas numa tumba. Estão simétricos e perfeitamente alinhados, mas não há nada de plácido naquele túmulo. Nenhuma sensação de paz. Os ossos malares de um dos crânios estão esmagados, amassados para dentro como uma máscara de papier maché. Várias costelas do outro esqueleto estão partidas e apontam para fora de modo estranho, como os galhos secos de uma árvore morta». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

O Templário Negro. Roberto Genovesi. «Leofric atirou com o capacete para o pó do chão. Estava sozinho. Longe dos companheiros. Mas, sobretudo, longe da batalha que estava prestes a começar»

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Manescalia. Terra Santa. 3 de Julho, anno Domini 1187
«(…) Mais ainda, pensou Leofric, persignando-se apressadamente. Acompanhou pelo canto do olho o pequeno cortejo que continuava pela estrada fora e, quando viu a escolta da Vera Cruz muito longe, tentou levantar-se, esperando do fundo do coração que aqueles cavaleiros já houvessem esquecido o seu rosto. Como se chama?, perguntou uma voz em tom perentório. O soldado que pouco antes o admoestara estava agora ali. Agora já não volta para trás, respondeu Leofric ao levantar-se. O sargento observava-o do alto da sela, quase de pé sobre os estribos. A sobreveste negra cruzada de vermelho. O rosto violáceo do cansaço, do sol, da tensão. Não estou a falar do cavalo, estúpido. Refiro-me ao teu senhor. Leofric olhou em volta. A sua cavalgadura era agora um ponto cinzento em movimento pela estrada de Manescalia. Wigstan de Clontarf. Sir Wigstan, precisou, soprando a areia para fora do capacete. Um irlandês, imagino. Outro qualquer, acrescentou o graduado, desconhecendo que dizia uma meia-verdade, ter-te-ia deixado a descascar batatas. Deslocou o peso do escudo que levava a tiracolo para equilibrar os movimentos do cavalo. E posso saber, se não for demasiado incómodo, onde se encontra agora o teu cavaleiro?
Leofric tentou compor-se, arranjando o cinto de que pendia a bainha de uma espada curta de ferro que desaparecera sabe-se lá onde quando fora arrancado dos estribos. Não sei, senhor, respondeu, sincero, empurrando o elmo sobre a cabeça. O sargento esquadrinhou-o como se se encontrasse diante de um leproso. Rapaz, se quiseres continuar a servir como escudeiro de um monge do Templo, terás de aprender a manter-te colado ao teu senhor como um chato ao cu de um porco. Estamos entendidos? Sim, senhor. Obrigado pelo conselho, senhor. O sargento tentou dizer alguma coisa. Depois deteve-se. Desatou a rir de repente.
Obrigado pelo conse1ho..., repetiu, abanando a cabeça, divertido. O único conselho que te posso dar é ires para junto de sir Wigstan o mais depressa possível. De certeza que já deve ter chegado ao acampamento. Depois esticou um braço. Imagino que o jovem corcel que vi fugir para o lado contrário do inimigo que nos preparamos para combater seja um dos teus, disse, sarcástico. Depois olhou em volta como se tivesse perdido a armadura. Mas não vejo o outro (os cavaleiros templários tinham três cavalos ao seu serviço; um para o cavaleiro, outro para o seu escudeiro e outro ainda de reserva, normalmente utilizado para transportar aprovisionamentos, armaduras e cobertores). Ficou magoado esta manhã, pouco antes de nos pormos a caminho. Deixámo-lo nas cozinhas.
O sargento refletiu por instantes. Tentou proferir alguma coisa quando um som abafado, semelhante a uma carga de trovões, invadiu o vale. Os últimos conrois dos templários e dos hospitalários passaram à sua frente, a grande velocidade. O sargento esporeou com fúria os flancos do animal, fazendo-o relinchar de dor. Os nossos tocadores não usam tambores. Depois afastou-se, deixando o escudeiro pasmado. Lamento, rapaz, mas terás de te desenrascar sozinho, gritou-lhe de longe, sem se voltar. Se por acaso me cruzar com o teu senhor, concluiu com uma gargalhada que se perdeu no vento, digo-lhe que as formigas não te mataram.
Leofric atirou com o capacete para o pó do chão. Estava sozinho. Longe dos companheiros. Mas, sobretudo, longe da batalha que estava prestes a começar. Talvez fosse verdade. O seu senhor teria feito melhor se o tivesse deixado a descascar batatas naquela maldita embarcação fedorenta. Porque queres tornar-te meu escudeiro? O cruzado deitara-lhe uma olhadela distraída, continuando a sentir as entranhas esgotadas pelos constantes acessos de vómito. A embarcação que transportava a enésima mão-cheia de cavaleiros para a Terra Santa partira de Génova pouco depois da alvorada do dia anterior. (…) A reacção imediata do cavaleiro fora um encolher de ombros. Não tendes um escudeiro, certo? O que te faz pensar isso?, respondera-lhe o outro entre dentes. Depois vomitara mais uma vez. Porque um escudeiro nunca deixaria o seu cavaleiro aqui a..., a... A vomitar como uma menina? É isso que estás a pensar, certo? Leofric não respondeu. (…) Para mim não existem outros cavaleiros além dos defensores do Templo de Salomão. O templário pesara demoradamente aquela resposta. És irlandês, certo? Só então Leofric se apercebera de que se tinha dirigido àquele homem sem pensar se seria capaz se compreender a sua língua. A sua pronúncia. O cruzado ostentara um sorriso embaraçado. Chamo-me Oswald Wigstan e fui ordenado poucas horas antes de pôr os pés nesta embarcação, rapaz. E, mesmo que tenhamos em comum a terra em que nascemos ainda não me parece poder ser um bom guia. Mas um cavaleiro não poder estar sem um escudeiro. Na verdade, nem sequer pensei nisso. Aconteceu tudo tão depressa... (…) Sou ajudante de cozinha, senhor. Consigo descascar cem batatas antes do virar de uma clepsidra. O cavaleiro templário tossira. Leofric pensara que estaria a tentar reprimir o enésimo acesso de náusea, mas estava a procurar conter uma gargalhada. Assim sendo, a vossa resposta é não, certo, senhor? Leofric baixara a cabeça. Depois voltara-se enquanto a gargalhada do cavaleiro se perdia no rumar das ondas contra a quilha. Espera, rapaz. Talvez um cavaleiro feito há um dia se possa contentar com um escudeiro descascador de batatas. E depois, em toda a minha vida, foste a primeira pessoa a chamar-me senhor». In Roberto Genovesi, O Templário Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-338-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

O Templário Negro. Roberto Genovesi. «Algures à sua volta, o capacete parara de rolar. Quando voltou a tê-lo entre as mãos, selou a descoberta com outra blasfémia picaresca»

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Manescalia. Terra Santa. 3 de Julho, anno Domini 1187
«(…) São Patrício era um grande safado. Leofric maldisse o dia em que decidira tomar conta daquele potro. Mas fê-lo entre duas blasfémias sussurradas a meio-tom. Certamente, assemelhava-se um pouco ao escudeiro de um cavaleiro templário em posição de quatro patas, como um cão, com o pó a queimar-lhe a garganta e a terra a impedi-lo de abrir as pálpebras, mas São Patrício reparara nele desde o dia em que, para o ferrar, lhe espetara por engano aquele prego na cartilagem acima do casco. Tinha a certeza de que antecipava o gozo daquele momento há muito. Percebia-o pelos relinchos de satisfação que ouvia, cada vez mais afastados, enquanto o animal fugia a trote. Vai-te embora. Vai para casa ruminar aveia. É o que sabes fazer melhor!, gritou-lhe, enquanto o animal se afastava. És apenas uma pileca!
Algures à sua volta, o capacete parara de rolar. Quando voltou a tê-lo entre as mãos, selou a descoberta com outra blasfémia picaresca, certo de que daquela vez a salvação da sua alma também não estaria em perigo. O segredo era precisamente aquele. Explicara-lho o padre que o acompanhara desde o dia do baptismo até ao momento em que envergara o primeiro elmo de combate. Se quiseres tornar-te um bom cavaleiro, tens de ter a alma pura, mas, e o padre Sean também o reconhecia, nestes tempos é difícil manter as promessas. Sobretudo se o interlocutor é o Altíssimo. Mas se deres ao teu cavalo o nome de um santo, de um mártir ou de um apóstolo, nos momentos de confronto nunca te arriscarás a oferecer a alma a Satanás. Um magro consolo, tendo em conta tudo o que acontecera num segundo, e o seu senhor, que o precedia com o primeiro conroi da expedição, prosseguira sem se aperceber de nada. Agora era preciso dar tudo por tudo para recuperar o terreno perdido, nem que fosse preciso desestribar outro escudeiro. Tinha de chegar ao acampamento com os outros cavaleiros para que todos pudessem ver Leofric, o pitta, o filho do moleiro, desfilar, orgulhoso, à sombra do estandarte do Templo. Um estandarte que, seguramente, num dia não muito longínquo, seguraria com as suas próprias mãos.
Imaginara o momento em que, de madrugada, deixara para trás as torres de Manescalia. À cabeça do exército cristão, vira nada mais nada menos que Raimundo de Trípoli com os seus cinco mil soldados de infantaria e trezentos cavaleiros. Atrás de si, reconhecera as milícias citadinas e a cavalaria de Guido de Lusignan e de Henrique II de Inglaterra. Seguidos em silêncio por um grupo diminuto de cavaleiros leprosos da Ordem de São Lázaro. Ao Templo e aos seus monges cabia a honra de fechar a formação com duzentos sargentos e cento e cinquenta cavaleiros. Um deles era o seu senhor, e Leofric, na amálgama de carroças, catapultas e animais de carga, avançava montado no seu jovem corcel como se viajasse sustido por centenas de braços invisíveis, saboreando antecipadamente o momento em que enfrentaria a sua primeira e verdadeira batalha, aos ombros de heróis que na Europa eram considerados os baluartes do cristianismo na Terra Santa. Ele, um simples escudeiro arrancado à despensa de uma embarcação de carga de um jovem guerreiro em viagem a caminho da glória, que apenas no dia anterior fora ordenado cavaleiro. Um acaso? O destino? A vontade de Deus? Leofric não fora capaz de responder. Mas mesmo então, com o rosto empastado em suor e pó, diante de um pôr do Sol vermelho como a cruz que os cavaleiros traziam ao peito, a única coisa que desejava era chegar montado, nem que fosse numa mula, ao local definido pelo destino para a contenda.
Ajoelha-te! Um cavalo passou-lhe à frente, a trote, lançando-lhe mais pó à cara. O soldado que o montava lançou-lhe uma olhadela de soslaio. Leofric levantou a cabeça de repente. Reconheceu de imediato as insígnias dos bispos de Acre e de Lida, rodeados por uma dezena de cavaleiros armados até aos dentes. Entre os escudos fechados em protecção dos dois prelados surgiu um elmo em forma de mitra, sobre o qual se destacava em relevo uma grande cruz de bronze. O bispo de Acre sustinha um longo bastão que terminava com um estandarte que representava o rosto de Cristo. O sinal de que a Vera Cruz, o madeiro em que fora crucificado o filho de Deus, viajava com ele. E, de facto, precisamente atrás do seu cavalo, num grande baldaquim erguido sobre quatro rodas cheias, carregava, de forma lenta e orgulhosa, uma gigantesca cruz plantada com uma coroa de polé sobre um pedestal de ferro. A madeira escura destacava-se dos profundos sulcos produzidos pela luz do Sol e do movimento sobre a superfície de ouro com que fora banhada. No cruzamento dos braços estava encastoado um relicário dourado, incrustado com pérolas e pedras preciosas e protegido por uma grade. A santa relíquia repousava naquele precário guarda-jóias». In Roberto Genovesi, O Templário Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-338-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «O pano embebido em sangue deslizou da testa. Uma mão, rápida, apanhou-o para o voltar a colocar no lugar»

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«(…) Depois de terem recuperado as selas e os atavios necessários, afastaram-se levando os animais pelas rédeas. Vinde até à minha tenda, convidou o picardo, satisfeito com a escolha. O espertalhão do meu criado arranjou aguardente, e sabe Deus como detesto beber sozinho... Ouviu-me, Rocheblanche? Maynard só pronunciou umas sílabas mal articuladas. O seu olhar embaciava-se, dando-lhe a impressão de vaguear num esplendor ofuscante. De repente, deixou de avistar o chão que pisava e então, tomado de pânico, agarrou-se às rédeas do cavalo para manter o equilíbrio. Mas a progressiva perda de forças fê-lo cair por terra.
O pano embebido em sangue deslizou da testa. Uma mão, rápida, apanhou-o para o voltar a colocar no lugar. Eu disse-vos, senhor, que estáveis com péssimo aspecto. Maynard acordou com um suspiro de alívio, encontrando-se nos seus aposentos. Sentia a testa em chamas e a perna incrivelmente inchada. Tentou levantar-se, mas o rapaz obrigou-o a permanecer deitado, comprimindo-lhe o tórax com a palma da mão. Incapaz de se opôr àquele gesto simples, o cavaleiro deu-se conta da própria fraqueza. Experimentou, além disso, uma grande angústia, que inicialmente não soube explicar. Depois, lembrou-se de ter sonhado com o Cristo crucificado da velha igreja, com as aberturas dos olhos escancaradas em órbitas negras, das quais saíam grandes vermes. Foi invadido por uma tal repugnância que sentiu o impulso de fugir. A mão, mais uma vez, impediu-o. O senhor de Vermandois trouxe-vos até aqui sem sentidos, explicou o rapaz. Carregando-vos nos braços como se fosseis uma mulher. O cavaleiro tentou falar, mas lembrou-se de que tinha a garganta seca. Esboçou um sorriso. Imagino..., sussurrou, o teu divertimento... As gargalhadas do rapaz distraíram-no da sensação de horror, permitindo-lhe cair novamente no sono. Em paz.
Demorou uma semana a recompor-se. Foi obrigado a permanecer deitado no catre, à espera de recuperar as forças, enquanto ouvia vozes sobre a partida de um grupo cada vez maior de soldados. A vontade de Filipe VI de suspender as operações militares espalhara-se, levando os guerreiros de alto estatuto a abandonar o acampamento para regressarem aos seus feudos. No entanto, sua majestade demorava-se na igreja derrocada juntamente com um círculo reduzido de fiéis. Maynard pedira ao rapaz que o informasse acerca dos seus nomes, descobrindo que no grupo também se encontrava Karel do Luxemburgo. Não conseguira outras notícias acerca dele, excepto o rumor de que era esperado com urgência em Colónia. Contudo, o príncipe hesitava em partir». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «O cavaleiro fez sinal de compreender, abstendo-se de retomar a conversa. Filipe VI recrutara quinze mil besteiros genoveses para apoiarem a cavalaria»

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«(…) Aqueles olhos não falavam de outra coisa. Era corno se o quisessem proteger, envolver numa aura de paz. Fixou-os sem ceder à comoção, invadido pelo remorso por todas as vidas que havia destruído. Depois, recuou um passo, em direcção ao arco do portal, e o encanto desvaneceu-se. Estava novamente sozinho, diante de um enorme mistério. Já percorrera metade da escadaria exterior quando viu um homem de armas correr na sua direcção para lhe oferecer ajuda. Maynard recusou com modos bruscos e depois tentou desculpar-se. Reconheceu então um rosto amigo. Robert de Vermandois, disse, que prazer voltar a ver-vos são e salvo.
Eu também, Rocheblanche. Moreno e de estatura hercúlea, Robert de Vermandois era um barão da Picardia caído em desgraça, mas movido por uma ligação marcial à honra. Ontem, na batalha, receei por vós. Arrisquei-me muito, reconheço. Pelo menos não vos haveis manchado de vergonha, respondeu o nobre, com ar triste. Combatia no flanco ocidental, entre hordas de soldados de infantaria, quando me ordenaram que massacrasse os nossos mercenários para evitar que batessem em retirada. Ouvistes os besteiros?, quis saber Maynard, começando a coxear até à sua tenda.
Robert seguiu-o, gesticulando com as grandes mãos. Sim, os sobreviventes genoveses. O cavaleiro fez sinal de compreender, abstendo-se de retomar a conversa. Filipe VI recrutara quinze mil besteiros genoveses para apoiarem a cavalaria, mas não era de espantar que aqueles pobres diabos tivessem revelado indecisão no combate. Chegados a Crécy depois de uma caminhada de mais de seis léguas, haviam-nos obrigado a atacar sem lhes ter sido permitido descansar. A voz de Vermandois voltou a chamar a sua atenção. Vindes com ar sombrio, Rocheblanche. Recebestes más notícias? Maynard evitou o assunto com um sorriso vago. Desejava apenas conferenciar com sua majestade, limitou-se a dizer, mas não se apresentou a oportunidade. O barão picardo encolheu os ombros. Desde que fomos derrotados, o rei não faz mais do que conversar com Karel do Luxemburgo.
Detectando uma ponta de desprezo, o cavaleiro ficou curioso. Conhecei-lo? Não tão bem quanto o pai, respondeu Robert. Karel é um homem ambíguo, sempre rodeado de padres e religioso até ao limite do fanatismo. Só sei que é um cobarde. O que haveis ouvido? É dado como certo que ontem se retirou da batalha antes do confronto decisivo. Maynard anuiu com interesse, pois aquela informação reforçava as suas suspeitas. Mesmo que não valesse como prova de traição, abandonar o pai no campo não depunha a favor do nobre Karel. De repente, foi obrigado a deter-se devido a uma pontada no joelho e, pedindo ao barão que o esperasse, percebeu ter passado os seus aposentos. Chegara à extremidade do acampamento, onde se encontravam os soldados de baixa classe e os cavalos.
Fi-lo andar mais do que devia, desculpou-se Robert, apontando para os estábulos, mas preciso de um novo corcel. E visto que em Crécy sobreviveram mais cavalos do que homens, gostava de tirar proveito do vosso conselho. Não precisais de vos justificar, amigo. Desprezando a dor, Rocheblanche apoiou-se no cajado e avançou direito. Tenho muito gosto em aproveitar a oportunidade, visto que também fiquei apeado. Na verdade, sentia-se cada vez mais fraco e teria preferido ir descansar, mas não suportava ser tratado como doente. Encontraram o guarda dos estábulos, ofereceram-lhe algumas moedas para poderem optar pelos melhores exemplares que haviam ficado sem dono e deram início à escolha. Não se tratava apenas de determinar se os animais eram saudáveis e robustos, mas também do temperamento adequado. Depois de um feroz confronto, um corcel podia perder a coragem e partir à desfilada ao menor sinal de perigo. Consciente do risco, Maynard avaliou com atenção os animais, os movimentos das suas pupilas, da cabeça e dos cascos, até escolher um cavalo preto de porte orgulhoso e uma égua de carga bastante robusta para transportar o peso da armadura. Por sua vez, Vermandois pousou os olhos num elegante cavalo branco». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

domingo, 28 de maio de 2017

Papas. Imperadores e Hereges na Idade Média. José D’Assunção Barros. «A polémica em torno da ideia de decadência aplicada à transição entre os períodos antigo e medieval é, como nos poderiam mostrar outros autores, bastante problemática»

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«(…) Neste sentido, é de lembrar que já remonta aos próprios tempos antigos a diversidade de leituras estabelecidas em torno dos marcos históricos que foram pressentidos pelos próprios antigos como sinais do fim de todo um período. Assim, enquanto alguns autores pagãos, particularmente tomados por uma visão pessimista, tenderam a encarar o saque de 410 sob a perspectiva de um acontecimento que sinaliza uma decadência que havia fragilizado o Império e possibilitado o saque de Alarico, já será outra a visão de Paolo Orósio (c. 385- c. 420), autor da primeira história universal escrita por um cristão e entretecedor de uma avaliação dos acontecimentos históricos onde cada aspecto ou acontecimento é medido em função da sua aproximação ou afastamento em relação ao cristianismo. Para Orósio, o saque visigodo do ano de 410 é positivado simultaneamente como demonstração do juízo de Deus e como anúncio de uma nova era que estaria por vir, acrescentando-se ainda a ênfase numa leitura sobre Alarico como visigodo convertido que desfecha um golpe fatal sobre a Roma pagã. Este tipo de leitura divinizante da história, aliás, onde cada acontecimento (seja este um sucesso ou uma catástrofe) fala directamente de Deus e de uma relação dos actores humanos com Ele, que pode no caso ser punida ou premiada, seria prontamente incorporada na Idade Média.
Os embates em torno da perspectiva da decadência do Império Romano já afloram, portanto, na própria época de desarticulação do mesmo. Em vista disso, amparando-se numa cuidadosa análise historiográfica sobre a apropriação e reapropriações desta noção carregada de sentido valorativo, Santo Mazzarino procura ressaltar os problemas de utilização da noção de decadência pela moderna historiografia, e sua recomendação taxativa é a de rejeitar a compreensão da Antiguidade Tardia como um período de decadência.
A polémica em torno da ideia de decadência aplicada à transição entre os períodos antigo e medieval é, como nos poderiam mostrar outros autores, bastante problemática. Por fim, veremos oportunamente, ao lado das ideias de declínio, queda e decadência, outros conceitos que têm sido propostos pela historiografia recente, incluindo o de desagregação, todos com implicações mais específicas para o estudo do último período do Império Romano.

Novos campos historiográficos e novas leituras da passagem
Por ora, consideraremos que os desenvolvimentos modernos da historiografia sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média correspondem precisamente à superação desta dicotomia que, apesar de gerada por posições aparentemente inconciliáveis, o assassinato ou a morte natural do Império, trazem como pano de fundo um mesmo posicionamento historiográfico francamente baseado nos acontecimentos políticos em nível institucional. Com o desenvolvimento da historiografia do século XX, o olhar dos historiadores vai como que se desatrelando desta exclusividade em relação à história política de âmbito institucional, e cada vez mais novas dimensões vão sendo colocadas em cena como questões centrais passíveis de serem examinadas. Economia, cultura, mentalidades, imaginário, demografia, a afirmação de novas especialidades da história voltadas para o diálogo com estas dimensões fundamentais permite que um mesmo conjunto de acontecimentos seja beneficiado por diversificadas cronologias que dependerão do problema a ser examinado pelo historiador.
Os estudos de análise histórica de populações, por exemplo, ao instituírem a partir de meados do século XX um novo campo histórico a ser definido como história demográfica, rechaçam por princípio a antiga maneira historiográfica de apodar de invasões bárbaras ao fenómeno do adentramento do Império Romano por povos diversos. Nem invasões e nem bárbaras, aliás, pois duplamente tem sido revista esta antiga maneira de interpretar o movimento de gentes que iria transformar tão completamente a face do Império Romano». In José D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN 978-853-264-454-1.

Cortesia EVozes/JDACT

As Grandes Sociedades Secretas. David V. Barrett. «Enterramos uma semente e ela transforma-se em alimento. O cereal morre, e depois volta a ganhar vida»

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«A história das sociedades secretas é a história da religião esotérica e é também a história da magia. Quaisquer que sejam as suas actuais práticas e ensinamentos, aspecto e prioridades, a maior parte das sociedades secretas tem raízes religiosas. A religião é tão antiga como o homem, e o ofício de sacerdote compete com o de prostituta e o de espião pelo título de mais velha profissão do mundo. O presente capítulo analisa brevemente algumas das muitas influências religiosas nas actuais sociedades secretas, desde o início dos tempos até finais da Idade Média. Note-se que as datas apresentadas para alguns dos primeiros mestres e autores variam de fonte para fonte. Além disso, as mitologias, filosofias e movimentos religiosos do presente capítulo não se seguem, necessariamente, por ordem cronológica; muitos sobrepõem-se.

Sociedade primitiva
As origens da religião são, a um tempo, externas e internas. O homem primitivo estava muito mais à mercê dos elementos do que nós, sendo o seu quotidiano afectado por trovões, relâmpagos, vento, chuva, inundações e seca. Acima dele estava o céu, com os mistérios do Sol durante o dia, e a Lua e as estrelas à noite. O que eram essas luzes? Porque se deslocavam pelo firmamento em diferentes alturas do dia, do mês e do ano, e porque variavam de brilho, forma e dimensão? O calor e a luz do Sol davam vida. Como ter a certeza de que voltaria a recuperar a sua força geradora depois de passar pelo ponto mais fraco, a meio do Inverno? Enterramos uma semente e ela transforma-se em alimento. O cereal morre, e depois volta a ganhar vida.
É fácil perceber como se desenvolveram os deuses: a partir dos grandes poderes da natureza, poderes que fogem ao controlo do homem. Poder-se-ia fazer pedidos a esses poderes? Responderiam favoravelmente, caso se fizessem sacrifícios? Qual seria o modo mais eficaz de abordar tais poderes? Seria perigoso? Poderia qualquer um fazê-lo, ou seria preciso um especialista, uma competência, uma arte, um poder? E assim nasceram os sacerdotes.
O homem queria ainda respostas para outras questões. O que acontece quando alguém morre? Eu vou morrer? O que me acontecerá quando eu morrer? A haver vida depois da morte, que forma ela assumirá? Onde é? É boa ou má? Como posso ter a garantia de que vai ser boa? Se há vida depois da morte, houve vida antes do nascimento? Se as colheitas vivem e morrem e voltam à vida, será o mesmo verdade para as pessoas? E ainda mais questões. Para onde vou nos meus sonhos? Porque não posso trazer coisas de lá? Os sonhos prevêem o futuro? Quem me poderá revelar o seu significado? Além disso, numa altura em que um ferimento ou uma doença poderiam facilmente levar à morte, quem conhecesse o tratamento correcto, as ervas certas, era merecedor de honras, tornava-se um dos mais importantes elementos da tribo.
O sacerdote, ou xamã, ou curandeiro, conhecia os rituais adequados para garantir que o Sol voltava todos os anos. Ele sabia como trazer chuva, como conseguir uma boa colheita ou uma boa caçada, como alcançar uma vitória contra uma tribo vizinha. Conhecia o significado dos sinais e dos presságios, o sentido oculto dos sonhos; e nos seus próprios sonhos viajava, a seu bel-prazer, até à terra dos espíritos. Sabia curar e amaldiçoar. Era um homem sábio, que até o chefe da tribo procurava em busca de conselhos. Ninguém vive para sempre, pelo que uma das tarefas mais importantes do sacerdote, tendo o bem-estar da tribo presente, era formar um sucessor nas artes complexas do seu mister. À medida que esse papel se foi tornando mais poderoso, também o conhecimento passou a ser mais bem guardado; criava-se a ligação entre o poder e o secretismo.
As sociedades desenvolveram-se e tornaram-se mais complexas, e o mesmo aconteceu às formas exteriores, mais públicas, da religião, a religião exotérica, bem como ao conhecimento secreto e ao secretismo do conhecimento, no cerne da religião, a religião esotérica. Esses dois aspectos tornaram-se cada vez mais distintos, até que os segredos internos da religião foram escondidos não só do público, mas também de grande parte dos sacerdotes». In David V. Barrett, As Grandes Sociedades Secretas, 1997, 2007, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-333-2.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

A Tentação de D. Fernando. Jorge S. Correia. «Recuando no tempo, o rei viera de Elvas para Salvaterra, daqui para Almada, escolhendo esta vila por ser cerca de Lisboa e a1i encontrar o sossego que tanta falta lhe fazia»

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Morre o corpo fica a fama
Porque me fostes tão infiel?, quase implorou o monarca Fernando I quando a esposa entrou no aposento de Almada, onde o rei se refugiou para esconder o deplorável estado físico que a doença lhe provocava. Senhor, não é hora de falar de infidelidades, respondeu-lhe a rainha, sem vontade de alargar a conversa. Alguma vez vos abandonei? Isso é que conta. Não estive sempre do vosso lado? Sabeis bem o que digo. São infidelidades, senhora, não são opções, insistiu Fernando, sem já articular bem as palavras. Avisado pelo sofrimento, desde há algum tempo que o corpo do rei começara a mirrar, as dores e a febre a tomarem conta do sossego, até que viu nos sinais o fim dos seus ainda jovens dias. Após anos de frustrações militares e diplomáticas, Fernando I, cedendo ao sabor das contingências políticas e da fraqueza de carácter, estava agora no ocaso da sua existência a ser devorado pela doença, arrancando-lhe do fundo das entranhas manchas de um esverdeado pegajoso. Prostrado, estando acompanhado no aposento que lhe servia de enfermaria, na verdade era o homem mais solitário do mundo. Há meses que fugia do contacto do povo, dias e dias que não queria ver ninguém do seu serviço, a não ser as pessoas fundamentais que o ajudavam a sobreviver.
Recuando no tempo, o rei viera de Elvas para Salvaterra, daqui para Almada, escolhendo esta vila por ser cerca de Lisboa e a1i encontrar o sossego que tanta falta lhe fazia. Não é que a vila da margem esquerda do Tejo fosse um sanatório, não era isso. Escondia-se do mundo, encobria o belo aspecto que tivera, não queria que lhe vissem a carcaça ressequida de tanto vomitar as entranhas. A vida, para ele, resumia-se agora a pequenos períodos de vitalidade, pois já nem os chás nem as mezinhas tinham o efeito soporífero que os físicos desejavam. Sem vigor, sem esperança, em Setembro de 1383 decidiu voltar ao paço, a Lisboa que tanto amava, onde esperaria que a morte lhe fosse suavizada por um não sei quê de espiritualidade. Uma morte santa, talvez pensassem os seus servidores. No século XIV havia muito disto. Ainda não passara meio século desde que a Peste Negra derrubara um terço das almas na Europa conhecida, um castigo da divindade sobre os pecadores, por assim dizer uma ideia difundida pelos próceres mais sectários da Igreja. É que as mortes podiam ser invocações do Inferno ou requisições de Deus, e este rei, pelo seu percurso de vida, embora pecaminoso nos costumes, não deixava de ser uma alma inocente.
Em Almada, mestre Gil, o principal cirurgião do rei, perante a gravidade da doença, requisitou os bons ofícios de mestre Mohamad, um famoso cirurgião mouro, que não fez mais do que confirmar o que o português Gil afirmara. Sua majestade sobreviverá o tempo que os deuses deixarem. Em vista do estado crítico que o contaminava, já mal respirava e da sua garganta só saíam bocados dos pulmões embalados em viscosidade, Fernando transmitiu ao chanceler a necessidade de vir morrer a Lisboa. Ordem respeitada, o monarca Fernando quis um pouco mais: quando chegarmos, de noite, todas as luzes deverão estar apagadas, as ruas despidas de pessoas, as janelas e portas das casas cerradas.
Chegaria à capital sem darem por ele, uma toleima, pensariam os servidores, como se o mais alto magistrado do reino pudesse passar sem ser visto. Rei é rei, um pensamento que do mais humilde criado ao nobre mais notável tinha como divisa, e sendo assim, o melhor era respeitar os desejos do soberano. Mensagem recebida, mensagem transmitida. Foram enviados pregoeiros para percorrerem as ruas de Lisboa, em particular as que iam das Portas do Mar e da Porta Ferro ao Paço do Apar, avisando os moradores e passantes que deviam recolher às suas casas quando o crepúsculo assentasse sobre a cidade, ameaçando com pesadas penas aqueles que desobedecessem.
Qual seria o pensamento do rei? Nunca fora de grandes urdiduras, porquê tanto sigilo? Quereria ele apanhar Leonor Teles em flagrante delito de adultério? Não era a altura para isso. A rainha acabara de ter outra gravidez infeliz, por certo não se poria a derramar paixões adúlteras para cima do conde Andeiro, enquanto o marido se desprendia da vida. Não sendo por isto, que outra razão haveria? O povo perdera-lhe o respeito, desde o atribulado casamento com Leonor Teles, uma ideia consubstanciada pelo carácter fraco do rei, sem jeito para a guerra e menos ainda para a diplomacia, por isso talvez quisesse evitar encontros desagradáveis com a plebe». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.
                                                                               
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