sábado, 15 de abril de 2017

Vera Cruz. João Morgado. «Meu senhor, perdoai-me, diz o bombardeiro que os homens estão encegueirados, que não divisam terra»

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Calecute
«(…) Muitas das embarcações de maior porte que se encontravam ao largo altearam as velas e embalaram a favor do vento para mar largo. Pequenas barcas a remos arranhavam nervosas as águas salgadas, esgueirando-se por entre corpos inanimados e peixes empolgados pelo sangue, por entre os restos de cordame, velas rasgadas, mercadorias naufragadas, alguns pendões bordados, restos de madeira dos paraus e zambucos, as pequenas embarcações indianas. Havia mastros e antenas a boiar com o lume ainda nas entranhas e uma quantidade enorme de ratos que procuravam nadar até terra. Ao cheiro da pólvora, juntava-se o cheiro do fogo: de madeira ardida e corpos abrasados. A carne destes porcos malparidos empesta os ares!, gritavam os soldados. Só o cheiro das especiarias que carregavam lhes animava de novo o olfacto e lhes despertava um sorriso no meio daquele tormento. Pedro Álvares mandou que se aproximassem de terra para ajustar a mira ao palácio do samorim e repetiu: fogo! Jesus Belomonte, o seu fiel escudeiro, olhava-o incrédulo: de tão transfigurado, mal o reconhecia. Altivo no seu porte, de rosto afogueado, faltava-lhe já a voz de tanto gritar por entre as névoas de fumaça e o ar irrespirável da pólvora queimada pelos canhões. Tinha atirado já com o elmo debruado de penas para a coberta suja do navio e retirado a armadura do peito. O sol rompia, o calor e a humidade sufocavam-no. Gotas de suor desabavam-lhe pela testa, pelo rosto, ensopavam-lhe a barba farta. Um homem gritava ao longe, esbracejava, mas o capitão-mor não o ouvia. Não ouvia ninguém. Não ouvia sequer a sua consciência. Os seus olhos estavam raiados de sangue, cegos pelo mal da ira. Meu senhor, interrompeu Belomonte tocando-lhe no braço. Meu senhor, perdoai-me, diz o bombardeiro que os homens estão encegueirados, que não divisam terra. Que lhes é impossível descortinar o palácio nesta correnteza de ventos fumados. Cabral parou. Não disse uma palavra. Os homens ficaram suspensos dos seus gestos enquanto escarravam para o chão e rangiam os dentes. Outros passavam as palmas da mão pelas testas limpando a sudação quente e salgada. Uma das bombardas de proa tinha mesmo rebentado causando a morte de um dos matalotes, um daqueles tantos marinheiros sem qualificação que estava encarregue de limpar as bocas dos canhões com o escovilhão comprido. As restantes peças de fogo ferviam pela explosão da pólvora e o arremesso constante. Repousavam agora. Era o primeiro minuto de silêncio naquela nau desde que se dera início à surriada contra os árabes e hindus.
Por fim. o capitão levantou a mão para suspender o troar dos canhões. O escudeiro levantou a bandeira e fez sinal às restantes naus para que também suspendessem o fogo. A mensagem foi passando entre as naus e os tiros aquietando. Belomonte, ordena ao despenseiro que seja ligeiro na repartição de uma canacla (antiga medida portuguesa igual a 1 litro e 4 decilitros) de água e biscoitos por todos os homens. O jovem curvou a cabeça em consentimento e saiu para cumprir as ordens. Os clérigos que se tinham recolhido assomavam agora nas vigias com as contas do rosário entre os dedos. As águas agitadas faziam ondular a nau. Ouvia-se por todo o lado o clamor sofrido de alguns homens. Uns queixavam-se dos ouvidos, pelo estrondo das explosões, outros tossiam tentando libertar-se da pólvora que lhes ressequira as gargantas. A água e os biscoitos souberam como uma iguaria de nobres. O físico que cuide dos feridos, ordenou o capitão-mor que permanecia firme no seu posto altaneiro». In João Morgado, Vera Cruz, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.

Cortesia de CAutor/JDACT