sábado, 15 de abril de 2017

Sancho I. O Filho do Fundador. Maria Violante Branco. «… possibilidade de sucesso do pedido de Afonso Henriques para ser reconhecido como vassalo da Santa Sé e rei de Portugal»

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A Longa Espera pelo Trono. O mundo que viu Sancho nascer e crescer
«(…) A medida que a Reconquista progredia para sul, era necessário restaurar as igrejas que durante vários séculos tinham ficado sob domínio muçulmano, e seria ingénuo esperar que os reis que protagonizavam essa conquista não quisessem ter uma palavra a dizer sobre a reorganização eclesiástica desses territórios e sobretudo sobre as pessoas que deveriam ser postas à frente das estruturas então restauradas. Nesse contexto, a forma como os arcebispos se relacionam com os reis dos reinos nos quais se situam as suas arquidioceses assume uma importância fulcral e a Hispânia do século XII assistiu à consciencialização por parte de reis e arcebispos da necessidade e vantagem da sua colaboração na promoção dos interesses respectivos. Os arcebispos de Toledo, de Santiago de Compostela, de Braga e de Tarragona transformaram-se nos aliados mais fiéis e úteis dos reis de Castela, Leão, Portugal e Aragão, respectivamente. Não só porque tentavam que os territórios das suas arquidioceses correspondessem aos territórios dos reis que serviam e que os protegiam, mas ainda porque insensivelmente todos esses arcebispados passaram a ser a instituição onde os reis recrutavam os seus chanceleres e de onde saíam numerosos notários para um dos órgãos decisórios mais importantes da cúria dos reis, a chancelaria.
Esta simbiose entre arcebispados e reinos em breve ajudaria a agudizar ambições pessoais e institucionais, dos arcebispos, como dos reis. Ora a questão do primado insere-se precisamente neste contexto. Quando Afonso VI conquistou Toledo aos mouros, em 1085, o papa achou por bem confirmar a restauração da antiga arquidiocese visigótica e conceder-lhe o estatuto eclesiástico de primaz das Hispânias, tal como nesses longínquos tempos visigóticos detivera. O facto de Toledo passar a deter o primado, ou seja, o direito de primazia sobre todas as outras igrejas hispânicas, implicava que todas as outras igrejas da Península Ibérica deviam prestar-lhe obediência como à sua cabeça.
Essa realidade daria origem à legítima preocupação, neste mundo ainda em construção, de que se pudesse considerar dever haver uma contrapartida dessa primazia na estruturação política da Hispânia, e havia de gerar as bases da quase crónica querela que viria a unir reis e arcebispos numa interessante comunidade de interesses, na medida em que as recusas em obedecer a Toledo por parte dos restantes arcebispos peninsulares acabariam por ter uma inegável leitura política na recusa dos restantes reis peninsulares em obedecerem ao rei de Toledo, isto é, ao rei castelhano. Mas de início, quando o papa agraciou Toledo com o primado das Hispânias, em 1088, nenhum dos restantes arcebispos peninsulares parece ter dado grande importância a essa concessão, e semelhante estado de indiferença havia de se manter ainda durante quase cinquenta anos. Seria só a partir dos anos 40 do século XII que tudo mudaria, e que a questão começaria a tornar-se absolutamente central, com as suas múltiplas ramificações e ingerência nas restantes esferas de poder, e sobretudo na sua coordenação com a outra querela eclesiástica por excelência destes anos, a que oporia Braga e Compostela, especialmente na vertente relacionada com o problema da jurisdição sobre as dioceses de Coimbra e Zamora, Lisboa e Évora.
Ora a questão do primado não se tornou subitamente essencial, não se tornou premente e nuclear, naquela altura e não noutra, por mero acaso. O facto é que se tornou absolutamente central, quando as evoluções políticas dos reinos peninsulares tornaram a questão da hierarquização eclesiástica um assunto relevante. Com Afonso VII no trono de Leão e Castela, um reino forte com tendências expansionistas, os restantes reinos hispânicos sentiram as exigências do arcebispo de Toledo em receber a obediência dos restantes arcebispos como uma tentativa de apropriação política dos seus reinos. O mesmo se diga de Portugal, onde a questão se torna central precisamente na fase em que Afonso Henriques afirmava a sua soberania sobre o território português com maior veemência e nos anos que se seguiram ao seu pedido de protecção papal para as suas pretensões a ser considerado miles beati Petri. Acontecia precisamente nos anos do reinado de Afonso Henriques durante os quais ele liderava o que parecia uma inspirada campanha para sul e leste. E a reivindicação da independência e soberania do arcebispado de Braga face ao de Toledo surgia quase como uma afirmação de independência do reino português face ao castelhano-leonês de Afonso VII, razão por que o arcebispo de Braga, João Peculiar, sempre tentou evitar jurar essa obediência ao toledano.
A fase mais aguda desta querela decorreria precisamente entre 1144 e 1163, facto que decerto deverá imputar-se tanto à índole determinada e aguerrida dos arcebispos de Toledo e Braga como à hostilidade entre os reis que serviam e aos receios derivados da possibilidade de sucesso do pedido de Afonso Henriques para ser reconhecido como vassalo da Santa Sé e rei de Portugal». In Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.

Cortesia de Bertrand/JDACT