terça-feira, 18 de abril de 2017

Papas. Imperadores e Hereges na Idade Média. José D’Assunção Barros. «O que é significativo, de qualquer modo, é que também nesta leitura o Mundo Romano e o Mundo Medieval são mostrados um tanto como planetas estanques»

jdact e wikipedia

«(…) Consideradas as simplificações e complexidades possíveis a esta primeira leitura, consideraremos agora que, em radical oposição à tese de que a civilização romana é destruída pelas invasões ou migrações dos povos germânicos, teremos os historiadores que defendem a ideia do declínio do Império Romano. Opondo-se à frase de Piganiol de que o Império Romano foi assassinado, um dos defensores da hipótese do declínio, propõe a frase de que o Império Romano morreu de morte natural. Aqui, além da ideia do acontecimento que produz o corte ou a ruptura definitiva, teremos a ideia do processo que conduz à decrepitude de toda uma civilização. O acontecimento-ruptura é aqui, ainda mais necessariamente, substituído pelo acontecimento-processo. De qualquer forma, em um caso ou outro, ainda teremos a ideia de algo que termina, e não de algo que se transforma. Na análise de Lot, as crises sociais, económicas e políticas do século III teriam gerado uma nova resposta política assinalada por um estado interventor, corrupto e burocratizado que substitui a antiga autoridade senatorial. A esta crise, da qual o Império Romano jamais teria se recuperado, também se somaria o novo tipo de organização militar onde os povos germânicos incorporados ao Império desempenhariam um papel cada vez mais destacado, por vezes à maneira de mercenários. Estes e outros processos são mostrados como os sintomas de um declínio. O que é significativo, de qualquer modo, é que também nesta leitura o Mundo Romano e o Mundo Medieval são mostrados um tanto como planetas estanques: um começa onde o outro já se foi, e são bastante minimizadas as interpenetrações entre estes dois mundos. Podemos indagar sobre o que nos revela, acerca das concepções historiográficas que a sustenta, a dicotomia que permeia a ideia de que o Império Romano morre como um grande Ser, ora assassinado, ora definhando como um velho moribundo que ao final de sua vida vê esvair-se gradualmente a sua energia vital enquanto se desbotam os principais traços que lhe compunham a identidade. A ideia de um acontecimento-ruptura que teria presidido a morte do Império através da violência dos povos germânicos se adapta, por exemplo, a uma historiografia que tem importantes desenvolvimentos no século XIX, e que anseia delimitar com precisão o acontecimento, situando-o por vezes em uma data bem-definida, e de qualquer modo sempre enfatizando o acontecimento político, político no sentido antigo, do macro poder que se estabelece ao nível dos grandes estados, instituições e confrontos militares. Ao mesmo tempo, na outra ponta da dicotomia, a ideia de queda ou de declínio ampara-se em muitos casos, embora por um caminho distinto, nesta mesma velha história política que se orienta tendo como perspectiva central a ser analisada a capacidade de uma civilização manter ou não uma unidade imperial mais ampla. Perder a unidade política, deste ponto de vista, é morrer, envelhecer, decair em vigor. É aliás oportuno lembrar as considerações do historiador francês Jacques Le Goff sobre as apropriações historiográficas do conceito de decadência, um conceito que acrescenta um tom ainda mais depreciativo à ideia de declínio, e que também pode eventualmente ser direccionado para questões meramente políticas relacionáveis à desintegração da estrutura política.
Vale lembrar que o conceito de decadência foi colocado também em pauta pelas próprias gerações de pensadores que vivenciaram e se seguiram à desarticulação do Império Romano em favor das novas unidades políticas e territoriais que introduzem o período medieval. É assim que, em um célebre estudo sobre O fim do Mundo Antigo que é também já um clássico, Santo Mazzarino (1916-1987) busca historiar precisamente as trajectórias da ideia de decadência na produção literária e na cultura latina como um todo, reinserindo-a no confronto ideológico entre cristianismo e paganismo que eclode na época e se estende também por períodos posteriores. A ideia de decadência, e essa é uma chave importante para a compreensão do uso do conceito pelos próprios autores da época, implica sempre uma comparação do período que se considera como decaído ou decadente em relação a um período anterior, necessariamente visto como melhor. Assim, na ideia de decadência está sempre explícita, de algum modo, uma exaltação ao passado. A consideração acerca de qual seria o elemento que produz ou produziu a decadência, obviamente, transmuta-se conforme a perspectiva do analista, que na época dificilmente escaparia de um posicionamento em relação à questão da dicotomia entre paganismo (ou humanismo clássico) e cristianismo». In José D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN 978-853-264-454-1.

Cortesia EVozes/JDACT