sábado, 22 de abril de 2017

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «Aquele monte é a Ambição de subir de que fala António Vieira. Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta III
«(…) Isto ainda não é tudo. Há tragédias misteriosas, mortes ignoradas, casos frustes, que, se forem-se desvendar, aterrorizariam um comissário de polícia. A mulher é o crime. É mentirosa, é cínica. Mente por vaidade, crucifica por prazer. São os seus encantos, a carne palpitante, os cabelos, os beijos, os gozos que amolecem a energia, a espinha, a cabeça, o orgulho e o dinheiro. É aquela chaga original, a vergonhosa ferida sempre aberta que sangra e que cheira mal... (d’Annunzio).
Há homens orgulhosos que pedem de joelhos perdão às mulheres. Mulheres orgulhosas que sofrem em silêncio as pancadas dos maridos, dos irmãos, dos amantes. E como o amor tudo transfigura, das rameiras faz santas, dos feios faz belos e arma em fortes os fracos; livra-te pois do Amor para que não sejas desgraçado. Lembra-te sempre de que ele é a pior e a mais enganosa das realidades, a mais disfarçada das ciladas.
Ai de ti se nele acreditares! Quem ama morre, quem ama avilta-se tão baixo que a própria lama tem ainda que descer muito para lá chegar.

Carta IV
Há uma tela de Rochegrosse intitulada Agoisse humaine. É um quadro que representa a vida. No primeiro plano muitas criaturas erguem o braço para chegar mais alto. Homens de casaca tão correctos como se fossem para um baile. Há mulheres decotadas vestidas em rigor. Homens condecorados e homens banais, velhos e moços, misturam-se e empurram-se, disputando-se numa agonia pavorosa, num combate sem nome.
Aquele monte é a Ambição de subir de que fala António Vieira. Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam, agarrando-se de pés e mãos, como se após viessem também correndo numa perseguição fantástica, as ondas de um novo dilúvio.
Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho que na vida leva ao triunfo é uma cena medonha que mais parece a fuga de uma derrota. Todas aquelas cabeças têm o ricto de um Tântalo supremo. São gastas, cansadas, lívidas. Os rostos são pálidos, suados, cor de terra, um não sei quê de loucura e de pesadelo; os olhos brilhantes, emoldurados no bistre das insónias e dos tormentos, as mãos crispadas, rapaces, em foice, os vultos rembrandtescos. São ferozes e são cruéis.
A tela é violenta e verdadeira. A vida é aquilo, assim enérgica, sinistra, brutal. Não há trégua, não há descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o. Há um homem de peitilho engomado e cabelo colado sobre as frontes que, sentado, morto, segura na mão inerte e suicida a coronha de um revólver.
Um grande homem brutal, de camisola, pulou, destruiu o último tapume, frágil afinal como uma convenção, e continua avançando sempre. Toda aquela populaça, todas aquelas criaturas cuidam só em subir. A certa altura a Morte fixa-se com suas pupilas de aço, hipnotizantes, e elas caem, rolam, afundam-se lá em baixo, onde as espera uma cova aberta, algumas sem terem chegado, outras que pararam finalmente, levando nos olhos um pavor incerto, qualquer coisa de espantoso e indescritível que faz parar o sangue nas artérias.
Para cada um que tomba avançam mil. Trava-se um combate em que o mais cruel, o mais forte, o mais canalha, é que triunfa. Nada de piedade nem de compaixão. Se não esmagares serás esmagado. Não há tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar seja como for, custe o que custar». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT