sexta-feira, 7 de abril de 2017

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Tinha de acertar o burrico, na perna direita traseira, para que ele sentisse a dor horrível e se assustasse, pondo em perigo a vida da menina»

jdact e wikipedia

«(…) Tinha de ser preciso e rápido, porque ali era passagem de peregrinos e algum deles poderia aparecer e atrapalhar o seu trabalho. Sabia, no entanto, que a maioria não usava aquele atalho, mas o homem o preferia porque levava carga e a criança. Pelo menos tinha sido esse o trajecto feito por ele no sábado anterior e por sorte não errara em ficar ali, na tocaia, saboreando por antecipação o sofrimento do outro, enquanto repassava na memória os golpes que deveria dar. Traçara uma estratégia que julgara inteligente. Tinha de acertar o burrico, na perna direita traseira, para que ele sentisse a dor horrível e se assustasse, pondo em perigo a vida da menina. Com certeza o espanhol estaria armado, mas ficaria aturdido com a cena e, até que saísse da dúvida entre se salvava a filha ou puxava a arma, ele o atacaria. O homem passou por ele, olhou-o com atenção e cumprimentou: buenos dias. Ele também respondeu em espanhol: buenos dias.
O animal andou mais rápido, assustado com a presença inesperada do intruso, e assim abriu espaço para ele erguer o bastão e baixá-lo impiedosamente. A lâmina cortante entrou na perna direita traseira do animal, logo abaixo do joelho, quebrando-lhe o osso. O burrico deu um urro assustador, agachou-se sobre a perna cortada, tentou firmar-se de pé, mas pendeu para o lado do barranco e derrubou a menina, que desmaiou ao bater a cabeça no chão. O homem voltou-se com rapidez e viu o peregrino avançar sobre ele com o bastão levantado em direcção à sua cabeça. Tentou pegar o revólver que trazia escondido na cintura, mas não havia tempo. Levantou o braço para amparar a pancada, mas não sabia que o bastão era como uma espada afiada e, num instante, o seu braço foi separado do corpo. O peregrino aproveitou o aturdimento que a dor causou na sua vítima e deu-lhe uma rasteira, derrubando-o.
O homem caiu de costas, gemendo, e, quando se tentou levantar, o peregrino pressionou-o contra o solo com o pé direito sobre o peito e a ponta do bastão na sua garganta. O espanhol sabia que aquele assassino não ia ter piedade. Tentou virar o rosto para ver a filha, mas estava imobilizado por aquela arma no pescoço. Se quiser que ela viva, diga-me: quem é o seu chefe? Para quem você trabalha? O assassino insistiu com rudeza, com a ponta de ferro na garganta do homem, que perguntou quase num gemido: mas, quem é você? Sou um homem inocente. Não sei quem me contratou. Apenas me pagaram para seguir um peregrino. Nem sei o nome dele. Não é verdade. Sabemos que faz parte de uma sociedade que usurpou a insígnia dos antigos templários, mas são falsos e ajudam os inimigos da Ordem. Diga quem é o seu Mestre, se quiser que a sua filha viva. Você vai morrer, mas pode salvá-la. O homem estava estendido no chão, imobilizado com a lâmina na garganta e sentindo a dor horrível do braço cortado do qual o sangue esguichava sobre o pasto.
Não minta! Você ganha para isso. Não é um Cavaleiro do Templo e desta vez recebeu instruções especiais. Quais são essas instruções? Vamos! Diga! O espanhol fechou os olhos e começou a rezar. Falhara na sua missão e agora a sua filha e a sua esposa também estavam em perigo. A mulher seguira na frente para observar o brasileiro e esperaria por ele no descanso da Virgem do Horizonte. Agora estava com medo de que esse assassino também a perseguisse. Pedia a Deus que o levasse, mas as deixasse vivas e sem perigo. Rezava para que algum peregrino passasse por ali, naquele momento, mas Deus queria dele um sacrifício maior. O sangue continuava a escorrer das veias expostas no braço decepado, que doía terrivelmente. Mas quem é você? Por que fez isso comigo? Sei que vou morrer, mas não faça nada à minha mulher e à minha filha, se tem amor a Deus. Sou um mensageiro de Deus para vingar o que vocês fizeram contra Ele. O pavor aumentou com o som daquela voz que parecia sair das chamas escuras do inferno e não escondia a raiva por não ter nenhuma informação. O assassino olhou para o lado e aquele corpinho, de bruços, com a saia levantada até a cintura, despertou de novo os seus instintos animalescos e, com um gesto brusco, forçou a ponta do cajado, que penetrou fundo na garganta do homem, matando-o. Não podia perder tempo porque, apesar de ser uma curva que desviava um pouco do Caminho, havia sempre o risco de outros peregrinos passarem por ali. Arrastou o corpo até a beira do barranco e jogou-o no precipício». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT