sexta-feira, 7 de abril de 2017

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «De repente, ouviu arfar um animal. Ajeitou-se com cuidado e olhou por entre os vãos das folhas. Conseguiu ver o burrico, cansado e suado, que subia o monte»

jdact e wikipedia

«Muitas vezes, à janela, nas noites de luz baça, quando a Terra, em redondo, parece a boca dum cesto enorme, suspenso ao firmamento pelo aro luminoso da Via Láctea, em que tudo soçobra, homens, coisas e loisas, metia a mão no seio a procurar. Achava espinhos, remorsos, uma que outra flor imarcescível, e a gente que aí vai, alguma celestial e sobre-humana, da muita que eu via andando, andando Estrada de Santiago fora». In Aquilino Ribeiro, 1992

A Via Láctea
«Os primeiros raios do sol brindavam o céu azul com uma luminosidade amarelada, naquele início de Setembro, enquanto pássaros sossegados faziam longos círculos com os bicos apontados para o chão em busca de algum pequeno ser que não teria mais o direito de participar dos quotidianos festejos da vida. O peregrino esgueirou-se por uma pequena mata e se escondeu entre os ramos de folhagens e espinheiros que sobreviviam à sombra das árvores com o pouco sol que lhes sobrava. Agia como se já tivesse estado ali antes e conhecesse a antiga trilha que acompanha a borda do precipício. Na verdade, não era bem um precipício, mas um barranco íngreme que se inclinava até ao fundo do vale, onde se encontrava com o silencioso riacho encoberto pela mata ciliar.
Sabia que o homem do burrico ia passar por ali. Mandara a mulher na frente e vinha conduzindo a filha, uma menina bonita de doze anos, montada no animal. Fazia esforços imensos para não se distrair com os pensamentos que o torturavam, quando se lembrava da menina. Aquela coisinha bonita, tenra como uma folha de alface, mas já entrando na juventude, logo ia ficar à sua mercê, sozinha. Procurava, no entanto, controlar os seus instintos porque a Ordem lhe dera uma missão e tinha de cumpri-la. Conhecia a severidade do castigo quando um membro falhava. Ele próprio ajudara a supliciar alguns que não seguiram correctamente as instruções e tiveram morte horrível. Concentrou-se e manteve os ouvidos atentos para o ruído característico dos passos do burrico, pois não tinha certeza se conseguiria vê-los através das folhagens quando estivessem chegando. O Caminho fazia uma longa e suave curva para vencer o morro até onde ele estava. Esperava pacientemente entre os arbustos, com o enganoso cajado que tinha na base uma lâmina de ferro forte e afiada. Ninguém desconfiaria dele, porque estava vestido como um peregrino comum: bermudas, botinas, mochila e um gorro que encobria as orelhas, o pescoço, e ajudava a esconder o rosto. A vieira sobre a mochila e o cajado completavam a camuflagem de um piedoso peregrino dirigindo-se para o túmulo de São Tiago, em Compostela.
De repente, ouviu arfar um animal. Ajeitou-se com cuidado e olhou por entre os vãos das folhas. Conseguiu ver o burrico, cansado e suado, que subia o monte com a sua carga, levantando para cima e para baixo a enorme cabeça, como se procurasse dar ritmo aos passos. Era o momento de sair dali e andar meio devagar como se estivesse economizando energia para subir o resto dos Pirenéus, porque o normal seria estar na trilha quando o outro aparecesse. Sentiu o animal mais próximo e, como seria natural que qualquer um fizesse, olhou de esguelha para trás e subiu a saliência do Caminho pelo lado de cima do barranco onde ficou em pé, para dar passagem, mas com a ponta do cajado escondida numa pequena touceira de capim. Era o mesmo homem que espreitara antes: um espanhol, nos seus quarenta anos, barba curta, espessa e preta, um tipo forte, atlético; parecia mais disposto que o animal. Foi bom ter pensado em tudo com detalhes. Precisava dar a aparência de um acidente, como se o burrico se tivesse assustado com alguma coisa e caído no barranco». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT